segunda-feira, 29 de março de 2010

Semana Santa de São João del-Rei: Crônica do Domingo de Ramos

Por Francisco José dos Santos Braga







Neste 28 de março de 2010, como ocorre todo ano aqui na bucólica cidade de São João del-Rei, comemorou-se com muita pompa a entrada de Jesus em Jerusalém. Por motivos didáticos, vou dividir esse rito católico em três partes: o Ofício de Ramos, a Missa e o Canto da Paixão.
O primeiro dos três ritos litúrgicos — Ofício de Ramos — se passa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário (de Pretos e Pardos), cuja irmandade completa 302 anos. O trajeto entre este templo e a Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar caracteriza-se pelo sentimento de alegria, que invade o coração de todos os fiéis, lembrando o cortejo triunfal que acompanhou Jesus ao entrar em Jerusalém. Na Catedral Basílica são oficiados os dois últimos atos de fé cristã — Missa e Canto da Paixão —, denotando tristeza motivada pelas leituras e salmos relativos à Paixão do Salvador.

Toda a parte musical é de autoria do
compositor são-joanense Padre José Maria Xavier, composta em 1872, com exceção da Antiphona ad Communionem (Antífona para a Comunhão), de autoria de Antônio dos Santos Cunha, adaptado de um trecho de seus responsórios da Semana Santa.


Já que apresentamos de forma resumida a celebração matutina do Domingo de Ramos em São João del-Rei, vamos agora apreciar a constituição de cada uma das partes do rito católico.
Dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, às 9h30min, se inicia o primeiro rito do Ofício de Ramos. Os fiéis que ali comparecem costumam levar de suas casas ramos ou folhas de palmeiras para queimá-los durante o ano com a finalidade de aplacar as tempestades ou afastar as pestes. Por outro lado, os fundidores de sinos misturam esses vegetais ao bronze do sino que está sendo fundido, enquanto rezam pedindo a perfeição do som daquele instrumento musical que se destinará ao chamamento dos fiéis à oração. A Liturgia, por sua vez, recomenda queimá-los, para que suas cinzas sejam impostas em cruz na testa dos fiéis no primeiro dia da Quaresma (Quarta-feira de Cinzas).

Enquanto o Bispo e os concelebrantes saem da sacristia e se dirigem ao altar, ouve-se o vibrante “
Hosanna filio David” (Hosana ao filho de Davi), cuja execução se reitera pela orquestra e coro até que os oficiantes cheguem ao altar. Terminado o canto, os concelebrantes voltam-se para o povo e o convocam a repetir os passos de Jesus em sua entrada em Jerusalém. Em seguida, o Bispo faz o incenso, asperge os ramos com água benta e vai solenemente do altar até a porta principal do templo, aspergindo os fiéis que se persignam em sinal de devoção. Quando de sua volta ao altar, o Bispo incensa todos os fiéis. Durante essas ações, ouve-se a orquestra e coro executarem “Pueri Hebraeorum, portantes ramos olivarum, obviaverunt Domino, clamantes et dicentes: "Hosanna in excelsis”. / Pueri Hebraeorum vestimenta prosternebant in via, et clamabant dicentes: "Hosanna filio David; benedictus qui venit in nomine Domini". (Os filhos dos hebreus, portando ramos de oliveiras, correram ao encontro do Senhor, aclamando e dizendo: Hosana nas alturas. / Os filhos dos hebreus depunham suas vestes no caminho, e aclamavam dizendo: Hosana ao filho de Davi: bendito o que vem em nome do Senhor.)
Concluído esse canto, proclama-se solenemente o Evangelho que, neste ano de 2010 (Ano C), corresponde à leitura de Lucas 19, 28-40.
Ainda dentro do templo, ouve-se o coro a capella intitulado “
Cum appropinquaret Dominus Jerosolymam”, cuja letra corresponde basicamente ao Evangelho lido.

Fora da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, é disposta uma procissão, cujo principal destaque constitui a formação de dois coros a capella, sendo o primeiro deles um quarteto (soprano e contralto, tenor e baixo). Durante o trajeto entre os dois templos, é cantado o
Hymnus ad Christum Regem (Hino a Cristo Rei). Enquanto o primeiro coro (quarteto) canta o refrão ou estribilho: "Gloria, laus et honor, tibi sit, / Rex Christe Redemptor. / Cui puerile decus prompsit / Hosanna pium.” (Glória, louvor e honra a ti, / ó Cristo Rei Redentor. / A quem a decência infantil manifestou / um piedoso Hosana.)
A que o segundo e grande coro responde cantando: "Israel es tu Rex, / Davidis et inclita proles, / Nomine qui in Domini, / Rex benedicte, venis." (De Israel és tu o Rei, / e filho ilustre de Davi, / que em nome do Senhor / vens, ó Rei bendito.)
A letra completa desse Hino é constituída por mais duas estrofes ou estâncias.



O segundo rito litúrgico (a Santa Missa) inicia-se após a procissão. Ao entrar na Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar, o coro canta: Ingrediente Domino in sanctam civitatem, Hebraeorum pueri ressurrectionem Vitae pronuntiantes. Cum ramis palmarum: “Hosanna, clamabant, in excelsis”. (Enquanto o Senhor entrava na cidade santa, as crianças dos hebreus proclamavam anunciando a ressurreição da Vida. Com ramos de palmeiras: “Hosana nas alturas”.)
Enquanto o Bispo e os concelebrantes sobem para o altar, a orquestra e coro executam, com a maior unção:
Domine, ne longe facias auxilium tuum a me, ad defensionem meam aspice: libera me de ore leonis, et a cornibus unicornium humilitatem meam. (Senhor, não afastes de mim o teu auxílio, volta o teu olhar para a minha defesa: livra-me da boca do leão, e (salva) a minha pobre vida, dos chifres dos unicórnios.)

Já no altar, faz-se a primeira Leitura retirada do Livro do Profeta Isaías (Is. 50, 4-7).
Ouve-se então executado pela orquestra e coro:
Tenuisti manum dexteram meam: et in voluntate tua deduxisti me: et cum gloria assumpsisti me. (Seguraste minha mão direita: e me conduziste segundo a tua vontade: e com glória me acolheste.) Esse texto vem seguido do versículo: Quam bonus Israel Deus rectis corde! mei autem paene moti sunt pedes: paene effusi sunt gressus mei: quia zelavi in peccatoribus, pacem peccatorum videns. (Como o Deus de Israel é bom para os de coração reto! Meus pés porém por pouco não vacilaram: os meus passos por pouco não se desviaram: porque tive inveja dos pecadores, vendo a sua paz.)

Lê-se, em seguida, o Salmo Responsorial (Sl. 21), com os dizeres lancinantes: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Em hebraico:
Eli, Eli, lama sabacthani?)

A segunda Leitura é retirada da Carta de São Paulo aos Filipenses (Fl. 2, 6-11), que fala da condição divina e humana de Cristo; sob essa condição humana, fez-se obediente até a morte, e morte de cruz, sendo exaltado por Deus acima de todo nome. Em seguida, é entoada a Aclamação ao Evangelho a cargo da orquestra e coro, com seu texto extraído de Fl. 2, 8-9:
Christus factus est pro nobis oboediens usque ad mortem, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum: et dedit illi nomen quod est super omne nomen. (Cristo se fez por nós obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que Deus o exaltou: e deu-lhe um nome que está acima de todo nome.)


Segue-se, nos moldes de Evangelho, o terceiro rito litúrgico da celebração, constituído pelo Canto da Paixão, em canto gregoriano, executado (ou encenado) pelos seguintes personagens (três sacerdotes) que se alternam conforme aparecem na narração da Paixão, a saber: Cristo; o cronista (São Mateus) e a sinagoga (os dizeres de outras pessoas que aparecem no relato, a saber: Judas, Pilatos, Pedro, o Sumo Sacerdote, etc.), além da turba (orquestra e coro, eventualmente alguma solista no caso das servas acusando Pedro), representando esta última as falsas testemunhas, os seguidores do Sumo Sacerdote, o povo, os Sumos Sacerdotes, escribas e anciãos, os soldados e os centuriões que guardavam Cristo.
Com grande unção, o coro, acompanhado por um violoncelo, introduz o texto da Paixão: Passio Domini Nostri Jesu Christi Secundum Mathaeum , ou seja, A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Segundo Mateus. Após essa introdução referencial e em profunda reverência, passa-se a ouvir o Canto da Paixão propriamente dito, todo em cantochão, na forma descrita acima.
Quando se atinge o ponto do relato em que o cronista canta “Jesus autem iterum clamans voce magna emisit spiritum” (Ora Jesus, soltando novamente um forte grito, entregou o espírito), todos se ajoelham, ficando em meditação por algum momento.
Quando finalmente o cronista canta “
Altera autem die ...” (No outro dia porém) até o final do relato "... signantes lapidem cum custodibus." (... selando a pedra com guardas.), modifica-se a modalidade de canto gregoriano que vinha sendo utilizado até então e termina com maior solenidade e devoção o relato da Paixão de Cristo. Essa modalidade de canto gregoriano ficou conhecida como "áltera" (outra, em português), certamente por sua conexão com o verso iniciado por "Altera autem die...".
No texto da Paixão de Cristo segundo Mateus, Cristo é apresentado como o justo (hebr. tsadiq, gr. δίκαιος, lat. justus), o inocente que é imolado em expiação por nossos pecados. No referido texto, consideram-no justo as seguintes pessoas: a esposa de Pilatos, o próprio Pilatos (ao lavar as mãos), Judas ("Pequei, entregando sangue inocente.") e o centurião (para quem, segundo o Evangelho de Mateus, Jesus era "o Filho de Deus" e, segundo o de Lucas [Lc. 23, 47] , Jesus era "um justo").

Dando continuidade à santa Missa, vem o
Credo: o Bispo entoa a introdução “Credo in unum Deum” (Creio num só Deus), deixando a cargo da orquestra e coro a execução de todo o restante da oração cantada. A partitura do Pe. José Maria Xavier para esse Credo está cheia de movimentos variados, privilegiando momentos de profunda unção (como o cantabile das flautas com acompanhamento orquestral no "Et incarnatus"), trechos com o coro a capella, a partir de "Crucifixus etiam pro nobis", alternando com outros com orquestra e coro até o fim do Credo, bem como outros momentos de exagerada alegria (com destaque para as fanfarras), ajustando-se perfeitamente ao Barroco mineiro tardio tão em moda na época que foi composto, mesclado com clara influência de Rossini e dos compositores românticos italianos.

Enquanto o Bispo oficia o Ofertório, a orquestra e coro executam do Salmo 68 os seguintes versos: “
Improperium exspectavit cor meum, et miseriam: et sustinui qui simul mecum contristaretur, et non fuit: consolantem me quaesivi, et non inveni: et dederunt in escam meam fel, et in siti mea potaverunt me aceto. (O meu coração esperou a censura e a infelicidade: e sustentei que alguém se compadecesse de mim, e não houve ninguém: procurei quem me consolasse, e não encontrei: e deram-me fel na comida e me deram a beber vinagre para me matar a sede.) Aqui ganha relevo a linha do baixo: dele depende o pathos dolente e introspectivo do Improperium. O efeito de grande tensão dramática é obtido com a técnica da "descida aos infernos" ("katábasis" ou "descensus ad inferos") utilizada pelo compositor sacro. O perfil da melodia, com a sua descida cromática em longa série dissonante (a partir de et sustinet, e repetido a partir de consolantem), exigindo uma posterior resolução em respectivamente "et non fuit" e "et in siti mea", e a gosto, uma cadência representada por "potavērunt"), era recorrente em "lamentos" da tradição operática italiana e foi aqui utilizado com grande eficácia e efeito dramático.

Digno de nota é também o
Sanctus (em A-B-A), executado pela orquestra e coro, com requintada melodia no trompete no "Hosanna in excelsis", secundado pelas flautas e clarinetas, num ritmo bem rápido. O compositor são-joanense criou inigualável contraste entre o "Hosanna in excelsis" (A), vivo, e o "Benedictus" (B), dolente, — o que dá interessante estrutura à peça musical, ao exigir um encantador cantabile na interpretação do Benedictus. A introdução ao "Benedictus" é executada pela orquestra; vem a seguir um longo trecho alternando coros a capella com intermezzi a cargo das cordas, em que há extrema expressividade. O ritornello com o "Hosanna in excelsis" a cargo do trompete, orquestra e coro, num ritmo bem vivo, encerra o grandioso Sanctus.

O
Pater Noster (Pai Nosso) é cantado de cor, em canto gregoriano, pelos oficiantes e assembléia em perfeito entrosamento.

O
Agnus Dei, composto com a maior unção pelo compositor são-joanense, é executado com maestria pela orquestra e coro.

Durante a comunhão, ouve-se a
Antífona para a Comunhão de autoria de Antônio dos Santos Cunha, executada pela orquestra e coro, com o seguinte texto: Pater, si non potest hic calix transire, nisi bibam illum: fiat voluntas tua. (Ó Pai, se não for possível passar adiante este cálice sem que eu o beba: faça-se a tua vontade.) Na introdução, o compositor faz uso de imponente dramaticidade, com acompanhamento compassado do contrabaixo, criando o motivo rítmico (tan-tan- TAN - tan-tan- TAN ), dando à peça um impressionante poder expressivo. O verso "nisi bibam illum" é executado a cappella, para maior expressividade.

Gostaria de finalizar esta crônica do festejo matutino do 1º dia da Semana Santa de São João del-Rei, dando crédito a algumas pessoas que abrilhantaram essa solene comemoração:

1) o Reverendíssimo Bispo Diocesano de São João del-Rei, Dom Waldemar Chaves de Araújo por toda a comemoração litúrgica;
2) o Reverendíssimo Monsenhor, Pároco e Cura da Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar, Sebastião Raimundo de Paiva;
3) o Reverendíssimo Vigário Paroquial Padre Geraldo Magela da Silva;
4) a Irmandade do Santíssimo Sacramento, patrocinadora de todas as solenidades da Semana Santa na Catedral Basílica e que no próximo ano de 2011 está completando o seu 300º aniversário de fundação;
5) a Orquestra Ribeiro Bastos, sob a direção da maestrina Maria Stella Neves Valle, pela execução orquestral e coral;
6) o comentarista sacro Prof. Abgar Campos Tirado;
7) a Rádio São João del-Rei, pela impecável transmissão radiofônica de todas as solenidades da Semana Santa, a cargo do competente radialista José Mário de Araújo;
8) a TV Campos de Minas, pela transmissão televisiva de todas as solenidades da Semana Santa.

Obs.: Para escrever esta crônica, não tive acesso às partituras dos compositores aqui mencionados. Sobretudo por isso, adotei a perspectiva de um espectador comum, em visita à cidade para participar das solenidades festivas que se realizam anualmente, o qual se maravilha com a encenação desse ofício litúrgico. As impressões que o marcam durante cerca de três horas — tal é a duração desse ofício — são aqui registradas em forma de breves anotações como uma espécie de ajuda-memória. Com essa ressalva, penitencio-me antecipadamente por usar terminologia leiga, não condizente com trabalho acadêmico-científico, especialmente no campo da Música.

* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

quarta-feira, 24 de março de 2010

Meu mestre inesquecível Padre Luiz Zver, SDB > > > 3ª Parte


Por Francisco José dos Santos Braga


O pensamento do "incomparável" Pe. Luiz Zver, notável pedagogo e cultor das humanidades, neste Blog do Braga, o dignifica. Mas não basta que se diga sobre os méritos de alguém: é preciso desvendá-los, para que, à luz do dia, se possa admirá-los.
O leitor lusófono desse blog passa agora a beber de fonte limpa o conhecimento profundo que emanava dos lábios desse santo sacerdote que dedicou, de corpo e alma, 51 anos de sua vida à vida cultural de São João del-Rei.

Agradeço aos deuses o fato de ter convivido com esse portento e calo-me, pois "que outro valor mais alto se alevanta".
Tomando de empréstimo ainda outra estrofe de nosso maior poeta épico, julgo ainda caber à memória do epigrafado a seguinte:
"E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."

Ouçamos, portanto, o que tem Pe. Luiz Zver a nos dizer:


Olhar Panorâmico sobre as Origens da Literatura Latina
Pe. Luís Zver, SDB
São João del-Rei, MG

Para muito estudante pouca coisa pode haver de mais maçante, do que uma lição de gramática ou de literatura latina. Regras, formas, exceções, datas, listas, análises — eis o que unicamente parece haver no latim, constituindo objeto de estudo teórico.

Mas não haverá algo de mais interessante? Vejamos se nos é possível descobri-lo.

Antes de tudo, talvez se pudesse verificar que é possível chegar à soleira da literatura latina, sem a gente se aperceber, sem a necessidade de concentração exaustiva e sem pensar automaticamente num manual de gramática ou texto escolar.

Literatura latina! Ocorreu-nos alguma vez, por acaso, que tudo o que nós pensamos ou sentimos passou por lá, nos veio de lá?

Duas civilizações dividiram o mundo ocidental antigo: a grega e a latina.

Ora, a grega, no decurso dos séculos, foi absorvida pela latina, e foi através desta que nos chegou a herança daquela. E a literatura latina foi durante séculos o receptáculo universal das idéias. Durante séculos nada se pensou, concebeu, sentiu, desde a África até a Germânia, desde a Espanha até o Mar Negro, ou pelo menos nada chegou até nós, sem ter passado antes pelo latim, de modo que não foi a literatura de um povo que nos legaram os romanos, mas a literatura do mundo.

Virgílio não é apenas o poeta provinciano de Mântua, nem tampouco o poeta oficial do Império que nasce: ele é Homero, é Teócrito, é um pouco da Jônia pré-histórica, da Sicília helenizada, do Egito, de Alexandria.

Cícero é bem mais que um simples literato-filósofo, conquanto grande, ou um advogado-político, conquanto brilhante: êle é ao mesmo tempo Platão, Aristóteles, Epicuro e Zenão, é Górgias e Demóstenes, é a retórica da Ásia Menor e toda a filosofia e toda a cultura anterior ao cristianismo. E podemos dizer mais ainda: Cícero e Virgílio são também a Idade Média, o nosso humanismo, a renascença, a nossa literatura clássica, portuguesa, francesa, espanhola, italiana, e em certa medida até a literatura do mundo moderno. E não me refiro somente aos que diretamente os imitaram. E' que estes gênios imortais e os seus êmulos deram às idéias e aos sentimentos humanos uma forma tão definitiva que nunca foi possível, aos que vieram depois, destacarem-se dela completamente, e durante longos séculos todos se apiicaram, ou se resignaram a pensar através deles, o que em parte vem a ser o mesmo que pensar como eles.

Foi isto um bem? Foi um mal? Eis uma pergunta embaraçosa, a que é difícil responder satisfatoriamente; talvez possa responder a ela a filosofia da história ou, em parte ao menos, a história da filosofia.

Mas não há dúvida de que apreciar e julgar estes grandes homens desta forma é bem mais e bem diferente do que dizer apenas, de acordo com os manuais: "Marco Túlio Cícero, nascido no ano 106, em Arpino, de família equestre, foi advogado no tempo de Sila ..."

Outro ponto a notar é que não podemos encarar a literatura latina à maneira como encaramos a portuguesa, francesa, alemã ou russa. Podemos ser tentados a achar muito natural que um povo tenha uma literatura e que a tenha tal e não diferente. Há até quem estabelece paralelos: assim como a Grécia teve Homero, Roma teve Virgílio; Plauto corresponde a Aristófanes e Terêncio a Menandro, assim como Horácio poderia ter um paralelo com Boileau, Sêneca com Calderón de La Barca, Cícero com Rui Barbosa e Tácito com Euclides da Cunha. Uma literatura assim se reduziria facilmente a uma série de quadros sinóticos e a algumas rubricas: epopéia, poesia lírica, teatro, história, eloquência; e poderíamos achar muito estranho se algum desses paralelos não ficasse preenchido.

Entretanto seria errado pensar que um povo, como tem uma história, tem necessariamente também uma literatura, sendo uma e outra manifestações necessárias da sua existência. Povos houve que tiveram uma grande história sem ter tido propriamente uma literatura.

Os Gauleses, por exemplo, fizeram grandes coisas: por longo tempo detiveram as invasões germânicas, penetraram na Itália, conquistaram Roma, invadiram a Grécia, devastaram Delfos, deixaram traços das suas incursões e provavelmente de permanência demorada, na Espanha ("Galícia") e na Ásia Menor ("Galácia"). E um povo que teve tanta atuação no mundo antigo, se conhecia a escrita, não sabia, ou não queria fazer dela coisa alguma, pois não nos deixou literatura alguma.

Neste ponto os nossos conceitos são falseados pelo exemplo ilustre da Grécia. Os Gregos tiveram uma literatura mesmo antes que tivessem aprendido a escrever. E a sua literatura segue depois as etapas da sua gloriosa história: quando ainda povo jovem, tiveram uma literatura espontânea e simples; sua idade madura é a idade da sua grande floração literária; povo decaído, tem uma literatura decadente.

O que também contribuiu para criar uma ilusão a este respeito foram certas teorias muito especiosas, excogitadas no começo do século passado e postas em circulação, como artigo de moda, pelo romantismo, como, por exemplo, a célebre hipótese do não menos célebre Niebuhr, baseada no princípio segundo o qual um povo primitivo cria sempre uma poesia nacional, geralmente épica: tais os cantos ossiânicos, os Niebelungen, os Romanceros, os Ramayana, e outros, e que estes cantos ingênuos são o prelúdio obrigatório de uma literatura clássica.

Ora, em Roma, apesar da boa vontade, do esforço e do desejo confessado de desenterrar de algures algum vestígio de uma epopéia primitiva, nós não encontramos nada de semelhante, e os longos séculos que medeiam entre a fundação da "urbs" e as guerras púnicas são deploravelmente vazios de qualquer indício, que mesmo com muita largueza e generosidade se pudesse chamar literário.

A literatura latina nasce toda como de um golpe. Como Minerva do cérebro de Júpiter, assim ela sai um dia, já toda equipada, do cérebro dos Gregos. "Roma já era adulta e ainda não sabia falar: foi a Grécia que lhe desatou a língua".

Que fez então Roma durante os longos séculos da sua história sem literatura? — Um francês, estudioso do assunto, responde lapidarmente: "Elle avait vécu". — Roma viveu. E que vida intensa não foi aquela! Os estudos mais aprofundados que puderam realizar-se recentemente nos revelam o que Tito Lívio não pôde ou não quis dizer nos 142 livros da sua obra monumental, "Ab Urbe Condita", de que infelizmente possuímos apenas trinta e cinco.

Imprensada entre a Magna Grécia, no Sul, dona de todos os portos e de todo o comércio, e a Etrúria, no Norte, habitada por um povo asiático de grande cultura e cliente natural dos gregos, rodeada por povos hostis, como os Úmbrios, os Oscos, os Volscos e os Sanitas, situada à margem do Tibre, na encruzilhada das estradas terrestre e fluvial, que ligavam o Norte ao Sul e o interior ao mar, Roma ocupava uma situação tão estratégica e crítica ao mesmo tempo que se viu num dilema terrível: ou crescer ou desaparecer.

À testa do seu bando de salteadores de estrada, Rômuio estabeleceu o seu quartel-general ao lado de um vau do rio Tibre, tentando dominar comercialmente as caravanas dos mercadores gregos e etruscos. Cobrava-lhes o imposto e nas enchentes facilitava-lhes a travessia, construindo através do rio uma ponte rústica. Pois Roma, antes de ser "urbs", passou por três fases distintas: foi antes uma simples ponte, e os bandidos de Rômulo eram os seus guardiães, zeladores, ou "pontífices". O seu comandante era o "Summus Pontifex". Depois veio a "Roma Quadrata", uma fortaleza, em que se abrigavam os súditos de Rômulo; e finalmente surgiu o "Septimontium" ou o tresdobramento da fortaleza quadrada em outras que se estenderam sobre as sete colinas.

Mas é perigoso instalar-se à beira ou sobre uma estrada importante e muito transitada: pode-se ser atropelado. E Roma com muita dificuldade defende-se contra os transeuntes.

Durante dois ou três séculos os Etruscos do Norte e os Gregos do Sul fizeram dela sua súdita ou sua cliente, e os Gauleses um belo dia foram acampar bem ao pé do Capitólio. Os próprios historiadores romanos não nos ocultam — se não o soubéssemos de outras fontes — que em Roma por bom número de anos reinaram aventureiros etruscos: Tulo, Tarqüínio, Tanaqüil não são nomes latinos, mas etruscos.

Entretanto Roma não só consegue libertar-se a si mesma, mas até defender os seus vizinhos contra os invasores, submeter os Etruscos, os Úmbrios, e mesmo proteger os seus vencidos do Norte contra os Gauleses e os do Sul contra os Sanitas.

Enfim no terceiro século veio a vez dos Gregos. Eis, porém, um fato singular na história das conquistas: Parece que estes terríveis guerreiros por nada anseiam mais do que por matricular-se, o mais depressa possível, nas escolas dos seus vizinhos e dos seus vencidos. Menos de um século após o estabelecimento dos colonos gregos da Cólcida na Itália, Roma já lhes herdara o alfabeto. Os romanos mantêm comércio constante com os Dórios da Sicília, com os Fócios de Marselha e, após a submissão de Cápua, estabelecem contacto com os Jônios de Nápoles: são ocasiões permanentes de adquirirem elementos de cultura através de termos que os designam (Poena, Machina, Balneum, Purpura), a arte da construção, o vestuário, o sistema monetário e até os próprios deuses, que com iguais direitos tomam assento ao lado das divindades indígenas. Dos Etruscos ainda recebem os Latinos a arte divinatória, a ciência augural e certas formas de espetáculos (as palavras "histrio" e "persona" são etruscas). De outros recebem em empréstimo instituições políticas e jurídicas ("cônsul", "multa" são palavras sabinas), termos que se referem à criação de animais e à agricultura (Bos, Oleum, Anas, Foenum, Furca — vêm de dialetos itálicos vários), ou ritos, crenças religiosas (Fundere = fazer libações; Dirus = aziago, são palavras estrangeiras) ou mesmo de coisas vulgares, como "popina" = botequim.

Se tal fenômeno se produzia ao contacto com povos de cultura igual ou pouco superior à sua, que acontecerá quando esses assimiladores de pensamento alheio se encontrarem, como senhores, diante do mais ilustre e prestigioso dos seus adversários, aqueles Gregos, cuja civilização tinha cinco séculos de vantagem sobre a sua?

Para compreender melhor o milagre do aparecimento da literatura latina, transportemo-nos para o instante em que os Romanos entram vencedores na cidade de Táranto, nos meados do terceiro século a. C.: De um lado, um povo em plena vitalidade, povo de agricultores, de comerciantes, de soldados, que soube conquistar, colonizar e explorar toda a Itália, mas que em questão de literatura não conhecia senão a do "scriba", o escrivão público, a do "vates", o redator de fórmulas de preces e de oráculos, a do "grassator", versejador parasita e adulador papa-jantares. De outro lado, uma nação supercivilizada, mas decadente, que já havia dois séculos estava descendo do seu apogeu político, mas rica de quatro séculos de literatura, filosofia e ciência. Ora, o segundo vem a ser escravo do primeiro. Poderia um tal servidor não tornar-se o pedagogo do seu senhor?

De fato, o grego sábio, refinado, vai transformar-se em instrutor do romano prático, homem de negócios e colono. "Andronikos" vai educar os filhos de Lívio. E nós sabemos o que foi que daí resultou: Lívio Andrônico será o primeiro escritor latino ...

«Graecia capta ferum victorem cepit et artes
intulit agresti Latio»¹,
diz com finura o poeta Horácio.

Depois disto, após ter aspirado pela vez primeira o estonteante perfume das letras, aconteceu ao romano como a quem pela vez primeira saboreia o mel: lambuza-se todo; ou antes como aconteceria a um leão, que tivesse sido criado no quintal e alimentado com leite e alface, quando pela primeira vez experimentasse o gosto de carne sangrenta e aspirasse pelas narinas dilatadas o áspero vento do livre deserto: ficou literalmente embriagado.

Roma aceita e até pede a invasão intelectual grega, atira-se à presa que se lhe oferece, heleniza-se com um ardor e uma sofreguidão de que não há exemplo na história cultural do mundo.

No momento em que ela mal se tornava capaz de constituir uns rudimentos de literatura, eis que já a tem toda pronta e feita. Até lá o romano mal e mal redigia uns escritos jurídicos (Jus papirianum), começava a copiar os discursos dos seus primeiros oradores (Ápio Cláudio, o Cego), ensaiava ritmos mal definidos (Verso Satúrnio), cantos satíricos ou fúnebres em obséquio aos seus grandes mortos, ou se divertia nos dias de festa com farsas e teatro bufo, improvisado em tablados erguidos em praças (Atellanes).

Deixado a si mesmo, teria certamente produzido, seguindo uma evolução lenta e normal, certos gêneros literários mais adequados ao seu temperamento; mas eis que se lhe atiram para repasto todos os gêneros ao mesmo tempo. Só lhe resta aceitar, traduzir e, quando muito, adaptar.

E isto explica duas características essenciais da literatura latina no seu começo: a) é uma literatura de tradução; b) é uma literatura sem evolução, adulta logo ao nascer.

Nos cinquenta anos que se seguem à tomada de Táranto, Lívio Andrônico já nos oferece uma Odisséia latina e tragédias, como Ajax, Aquiles, O Cavalo de Tróia; Névio nos presenteia também com tragédias, como Heitor, um outro Cavalo de Tróia e ainda comédias; Plauto traduz e adapta Menandro, Filêmon, Dífilo. Em seguida Ênio importa Eurípides, faz sátiras, epopéia, traduz uma história de mitos e uma obra de gastronomia. Cecílio e Terêncio disputam os restos da comédia grega, que saqueiam à vontade, a ponto que Terêncio é acusado de ter esgotado a fonte, utilizando duas peças para compor uma ("contaminatio"). "Nascem poetas, como flores na primavera", diz um contemporâneo.

Outra coisa que merece reparo é a seguinte: sabe-se que na Grécia a prosa literária apareceu muito depois da poesia, o que é paradoxal apenas na aparência, porque a tendência natural de todo aquele que compõe literatura pela primeira vez é de dar à sua composição uma forma que a distinga do linguajar comum. Quem já não teve veleidades de escrevinhar versos, mesmo muito antes de saber redigir bem em prosa? Aliás, a história de quase todas as literaturas confirma esta tendência: hajam vista os Cancioneiros portugueses, EI Cantar del Mio Cid, Les Chansons de Roland, etc.

Em Roma, visto que basta estender a mão para se enriquecer, surgem obras em prosa ao mesmo tempo que em verso. Mas é aí que está um paradoxo mais único que raro: o linguajar de todos os dias, a fala desses trabalhadores e desses comerciantes, parecia tão indigna e imprópria para a literatura, que os primeiros prosadores latinos escreveram em grego ... E' como se disséssemos que o primeiro documento literário da língua portuguesa foi redigido em francês. De fato, é em grego que Fábio o Pintor e Cíncio Alimento compuseram a história de Roma. Temos aí verdadeiramente uma literatura latina ou uma continuação de literatura grega? Ênio sonhou certa vez que a alma de Homero se tinha passado para o corpo dele. Este sonho, ainda que bastante ingênuo, para Ênio, exprime todavia com precisão o sentido da herança literária que coube aos romanos do seu tempo.

Houve duas outras invasões da cultura grega: a primeira em 146, quando, após a tomada de Corinto, a própria Grécia se tornou província romana. Nesta época a língua grega em Roma era a língua do mundo elegante, ou língua da moda, mais ou menos como no fim do século passado e no primeiro quartel do presente foi o francês em certas rodas sociais das grandes cidades do Brasil.

A segunda foi quando surgiram os "poetae novi" ou "neóteroi", como Lévio, Licínio Calvo, (Quinto) Lutácio Catulo, e o maior de todos, (Caio) Valério Catulo, que foram os introdutores do alexandrinismo, inspirados como estavam pelas auras que partiam de Alexandria, cidade que tinha concentrado em si tudo o que havia de helenismo refinado, quer nas artes, na literatura ou na filosofia.

Mas, se assim é — poder-se-á objetar, — se a literatura latina não passa de uma cópia do grego, que interesse poderá despertar?

Quaisquer que sejam os modos de ver e os fatores decisivos na formação da literatura latina, o fato é que esta despertou sempre e continua a despertar vivíssimo interesse. Sem dúvida, numa obra admiramos sobretudo a originalidade e o merecimento criador; mesmo numa bela tradução, é o autor original (e não o tradutor) o que suscita as nossas simpatias e entusiasmos.

Notemos, porém, o seguinte: os romanos não somente traduziram servilmente, mas imitaram e adaptaram. O preceito horaciano
«nec verbum verbo curabis reddere fidus
interpres
...» ²
pode estender-se ao quadro geral da literatura latina.

Em segundo lugar, não sabemos, por muita obra-prima, mais próxima de nós, que o imitador pode ser até mais originai e mais perfeito que o seu modelo?

Por exemplo, O Anfitrião de Molière é imitação da peça homônima de Plauto, o qual por sua vez a imitou de Menandro. Não há hoje ninguém que entre os três não conceda a primazia ao comediógrafo francês. La Fontaine é sem dúvida superior a Fedro e a Esopo, seus modelos. E que é que há de mais virgiliano do que as Geórgicas? Entretanto nesta obra primorosa há Teofrasto, Eratóstenes, Arato de Soles e Eudóxio de Cnido, Nicandro de Colofonte e Demócrito de Abdera, sem contar Aristóteles, Hesíodo, Homero e os latinos Catão, Lucrécio e os dois Varrões ...

Além de que, depois de tudo, há muita obra original, tipicamente romana, e especialmente impregnada do espírito romano; e foi isto o que lhe deu a imortalidade.

De fato é prodigiosa a sorte desta literatura: Nascida muitos séculos antes da nossa era, atravessou os últimos séculos da República e todos os séculos do Império, resistiu às invasões dos Bárbaros e às vicissitudes da Idade Média, perpetuou-se até os tempos modernos, defendendo seu posto e sua classificação ao lado e acima das jovens literaturas que ela inspirou.

Esta espécie de perenidade é uma das suas principais características. Outra característica é a sua universalidade: desde o começo há literatos latinos por toda a parte, antes longe de Roma do que na própria capital. Pouco importa que os autores sejam citadinos de Roma, cidadãos provincianos ou súditos de terras estrangeiras; com efeito, desde o princípio houve escritores alienígenas: Lívio Andrônico era grego; Ênio e Pacúvio, semigregos, da Calábria; Névio e Lucílio, Campanos; Ácio e Plauto, Úmbrios; Cecílio, Gaulês da Insúbria; Terêncio era africano, de Cartago. Ironia dos fados: o primeiro poeta romano, de Roma, é certo Tício, do fim do século segundo a. C: mal lhe conhecemos o nome ...

Quase todos os grandes autores latinos, cujas obras estudamos no curso das humanidades e cujo linguajar admiramos e procuramos imitar, não tiveram o latim por língua materna: na época clássica, se Juvenal, Suetônio e Tácito são romanos, Catulo vem do lago de Garda e Plínio do lago de Como; Virgílio é mantuano e Tito Lívio paduano, semigauleses; Sêneca e Lucano são espanhóis, como também Marcial e Quintiliano; a África nos deu ApuIeio e Frontão, e mais tarde, Tertuliano e Lactâncio, Cecílio Cipriano e Agostinho; S. Jerônimo vem dos Bálcãs e Ausônio das Gálias ...

Pouco importa: há uma tradição romana, um espírito romano, que se impõe a todos; os estrangeiros são conquistados, anexados, absorvidos; o mundo inteiro se amolda na fôrma latina, já Ênio o dissera, referindo-se à sua própria origem, de Rúdia, na Magna Grécia:
«Nos sumus Romani, qui fuvimus ante Rudini».³

Avieno, procônsul da Acácia, traduz este sentimento de universalismo, cantando as conquistas de Roma:
«(...) Romanas aquilas Rhodanus tremit, Italidum vi
Moesta paludivagos Germania flevit alumnos

E como estes dois, inúmeros outros, das mais distantes paragens e das mais diversas épocas, poderiam ser citados, falando de Roma, como da própria pátria e do espírito latino, como sua partilha.

Entretanto sobre esta Roma um mundo novo surge: Não percebemos as hordas bárbaras que passam, não vemos os primeiros Germanos que transpõem o Reno e os Alpes para se defrontarem com os exércitos de Honório nas planícies de Toscana e os Visigodos que saqueiam a cidade eterna, os Anglo-Saxões, que invadem a Grã-Bretanha, os Burgúndios que penetram na Gália? Não vemos Alarico, Átila, Genserico, Odoacro, os Longobardos precipitarem-se sobre o que foi o império de Augusto? E enfim os Bizantinos em tardia resposta do espírito grego ressuscitado às conquistas romanas de sete séculos antes?

O poderio político se desmorona fragorosamente, é verdade, mas o espírito sobrevive: por cima de todos os cataclismos brilha a estrela da língua e da literatura latina; e como outrora Roma se helenizara, assim agora os jovens povos se latinizam.
Com efeito, os Vândalos da África têm seus poetas ... latinos; a Espanha tem Prudêncio, o Horácio cristão, e Isidoro de Sevilha, o filólogo; Venâncio Fortunato causa admiração aos letrados de Poitiers e Sidônio Apolinar, de Lião, canta as invasões, contemplando, na expressão de Verlain, a passagem dos bárbaros louros:
«Istic Saxona caeruleum videmus,
Hic tonso occipite senex Sicamber;
Hic glaucis Herulus genis vagatur,
Imos Oceani colens recessus
Algoso prope concolor profundo
Hic Burgundio septipes ...»

E o espírito romano amolda também os que chegam no fim: Clóvis é herdeiro de César e Carlos Magno no Natal de 800 cinge em Roma a coroa de Augusto.

Paulino de Aquiléia retoma o plectro de Virgílio, celebrando em belíssimos versos a cidade de Estrasburgo, "urbs dives argentea" (Argentoratus era o seu nome antigo):
«Barbara lingua Stratiburgus diceris;
Olim quod nomen amisisti celebre,
Hoc tibi reddidi mellisonum
Amici dulcis ob amorem, ...»

Tão imortal e perpétuo é o patrimônio literário latino que jamais deixou de viver e de influir nos espíritos doutos. Mesmo longe das grandezas políticas e guerreiras antigas, Roma é grande, como em belíssimo dístico o escreveu Hildeberto du Mans:
«Par tibi, Roma, nihil, cum sis prope tota ruina;
Quam magni fueris integra, fracta doces



Comentários e notas do autor do blog:

¹ "A Grécia, conquistada, subjugou o (seu) selvagem vencedor e introduziu as (suas) artes no Lácio rústico." (Epistulae 2.1.156-7)
As conquistas de Alexandre, o Grande, espalharam o Helenismo imediatamente sobre o Oriente Médio atingindo o interior da Ásia. Depois de sua morte em 323 a.C., a influência da civilização grega continuou a expandir-se ao longo do mundo mediterrâneo e oeste da Ásia. O período helenístico da história grega começa com a morte de Alexandre em 323 a.C. e termina com a anexação da península e ilhas gregas por Roma em 146 a.C..
Embora militarmente a Grécia tenha sido derrotada por Roma, aquela impôs aos vencedores romanos a cultura helenística. As artes e literatura romanas foram calcadas sobre modelos helenísticos. A língua grega "koiné" tornou-se a língua dominante na parte leste do Império Romano. Na cidade de Roma, a "koiné" esteve em largo uso entre pessoas comuns, e a elite falava e escrevia grego tão fluentemente quanto latim.

² "Como um verdadeiro tradutor, deverás ter o cuidado de não verter palavra por palavra ..." (Horácio, Ars Poetica, 133-134)

³ "Sou um homem de Roma, mas antes fui um homem de Rudiae."
No momento que escrevia, Ênio vivia em Roma, tinha sido agraciado com a cidadania romana e obviamente sentia que verdadeiramente pertencia à comunidade romana, enquanto num estágio inicial de sua existência deva ter-se considerado como pertencente ao mundo social de Rudiae, na parte sul da península de Salento.

4"(...) O Ródano teme as águias romanas, com o ataque funesto
Dos Romanos a Germânia chorou suas crianças que andam pelos pântanos."
(Rufus Festus Avienus, Periegesis seu Descriptio Orbis Terrarum, 309-310)
O rio Ródano - ou "Rhône", para os franceses - nasce nas regiões glaciais dos Alpes da Suíça e se dirige para Oeste, atravessando vales e vinhedos e desaguando no belo lago Léman, na fronteira da Suíça com a França.
Penetrando no território francês, ele forma uma grande curva de 90º no sentido anti-horário até que, passando a cidade de Lyon, se dirige para o sul da França, desembocando, cerca de duzentos quilômetros depois, no Mediterrâneo, próximo à Marselha. Nas encostas desse trecho francês do rio - "Côtes du Rhône", para os franceses - encontram-se os melhores vinhedos e os vinhos mais afamados do sudeste da França.

5 São Venâncio Fortunato ou Venantius Honorius Clementianus Fortunatus (c. 530-c. 600/609)

6 "Aqui na Saxônia vemos o azul,
Este velho sicambro com o occipício tosquiado;
Este hérulo vagueia com pálpebras esverdeadas,
Habitando as profundezas do Oceano
Quase da mesma cor que o fundo do mar coberto de algas
Este burgúndio com sete pés de altura ..."
Saxões: povo da Germânia, habitantes da região entre os rios Albis e Chaluso (moderno Holstein).
Sicambros: povo da Germânia, habitantes das margens do Reno.
Hérulos: povo germânico, originários do sul da Escandinávia, que se fixaram na costa do Mar Negro, onde foram dominados pelos Ostrogodos e pelos Hunos, nos séculos III e IV.
Burgúndios: povo germânico estabelecido na Gália (moderna Bourgogne, França).
São Sidônio Apolinar (431 ou 432-487 ou 489), humanista da Antiguidade tardia, cita, numa carta a certo Burgundius, um palíndromo perfeito com recurso à oposição Roma-amor, a saber: "Roma tibi subito motibus ibit amor"
cuja tradução (otimista) pode ser "Em Roma o amor te acontecerá de repente com paixões", mas também pode ser (pessimista): "Ó Roma, o teu amor se desmoronará de repente com perturbações da ordem". (Epistulae 9.14.4-5)

7 "Em língua bárbara és chamada Stratiburgus;
nome célebre que perdeste outrora,
eu o devolvi a ti (melíssono)
por causa do amor de um amigo querido, ..."
Paulino da Aquiléia foi um dos intelectuais vindos da Itália para a Gália, trazidos por Carlos Magno (Carolus Magnus em latim) para promover o Renascimento Carolíngio. A idéia era fazer surgir um novo império idealmente vinculado ao velho Império Romano, inspirado na Roma Antiga, no esplendor da época áurea de suas produções literárias. Além de italianos, Carlos Magno buscou também intelectuais espanhóis e ingleses.

8 "Igual a ti, Roma, não há nada, ainda que te encontres perto da total ruína;
Ensinas quebrada quão grande fôras inteira."
(Hildeberto de Lavardin, Carmin. Min. 36, De Roma v. 1-2)
Com esses versos elogia Roma Hildeberto de Lavardin, bispo de Le Mans, para quem até as ruínas afirmam a indestrutível excelência da capital antiga.
*) Artigo publicado pela Revista de Cultura Vozes, Ano LI, junho de 1957, p. 440-449, Petrópolis, RJ.
* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

sexta-feira, 19 de março de 2010

Meu mestre inesquecível Padre Luiz Zver, SDB > > > 2ª Parte


Por Francisco José dos Santos Braga



O pensamento do "incomparável" Pe. Luiz Zver, notável pedagogo e cultor das humanidades, neste Blog do Braga, o dignifica. Mas não basta que se diga sobre os méritos de alguém: é preciso desvendá-los, para que, à luz do dia, se possa admirá-los.
O leitor lusófono desse blog passa agora a beber de fonte limpa o conhecimento profundo que emanava dos lábios desse santo sacerdote que dedicou, de corpo e alma, 51 anos de sua vida à vida cultural de São João del-Rei.

Agradeço aos deuses o fato de ter convivido com esse portento e calo-me, pois "que outro valor mais alto se alevanta".
Tomando de empréstimo ainda outras estrofes de nosso maior poeta épico, julgo ainda caber à memória do epigrafado as seguintes:
"E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."

Ouçamos, portanto, o que tem Pe. Luiz Zver a nos dizer:




Grandezas e Benemerências do Magistério *

Pe. Luís Zver.
São João del-Rei, M. G.



1. "Ordem geral: Apagar os faróis!"


Um poeta moderno, num belo poema recente, descreve a situação angustiosa que se apresentou para certas regiões da Europa, quando, durante a última guerra, por motivos estratégicos, o comando geral aliado expediu certo dia uma ordem que devia ser cumprida em todas as costas, portos, fortalezas do Atlântico, do Mediterrâneo e do Mar do Norte: "Apagar os faróis!"

Deixai, senhores professores e senhoras professoras, que vos recite alguns versos do poema:

"Apagar os faróis!"

Noite escura.
Hórrida ruge a tempestade.
Uiva lúgubre o vendaval,
Geme o vento e o temporal
Se mistura,
Em feérica claridade
Dos relâmpagos, com o troar
De mil vagalhões do mar.

Singra as ondas, minha nau!
Rompe, vence o vento mau!
Já está aceso ali o farol:
Ele é o norte, ele é o sol.

— Como assim?
"Todos os faróis se apaguem!»
Esta é a ordem do general.
Ele quer o "black-out" total.
Ai de mim!
E os abismos que nos traguem?
Que nos amortalhe o mar,
Sem uma luz a nos guiar?

Era assim como se Deus
Apagasse os astros seus,
Sol, estrelas, o arrebol,
Quando se apagou o farol.

2. O Centro de Estudos Pedagógicos.

Foi com o maior interesse, ilustrados ouvintes, que acompanhei o nascer e o robustecer-se deste Centro de Estudos Pedagógicos que congrega a elite intelectual de São João del-Rei e os maiores expoentes da sua cultura. Foi uma ideia feliz do Revmo. Sr. Pe. Ralfy Mendes, que o concebeu como uma irradiação da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras e lhe traçou as diretrizes básicas; idéia que se concretizou graças ao "habitat" favorável em que a semente foi lançada. E' um "verbo que se fez carne" e que fazemos votos se perpetue entre nós, para o bem de cada um dos batalhadores da instrução, do elemento discente e, por ele, de toda a população da "urbs" e do município, de acordo com as altas finalidades para as quais o Centro foi fundado.

Terei grande satisfação, senhoras professoras e senhores professores, se as minhas palavras tiverem o poder de enamorar-vos um pouco mais da vossa vocação, de estimular-vos ao seu apreço e ao seu desempenho sempre mais perfeito, apesar dos inegáveis e ingentes sacrifícios que o magistério impõe aos que lhe consagram a vida.

Não temo ser desmentido ao afirmar que o Centro de Estudos Pedagógicos dá a São João del-Rei uma posição pioneira entre as cidades de Minas, e quiçá do Brasil, visto que não nos consta da existência, até o momento da sua fundação, de instituição similar alhures, embora quem quer que a considere com um pouco de penetração, deva reconhecê-la de indiscutível utilidade.

Não somos um sindicato, nem uma simples associação de classe; somos isto e muito mais: somos sobretudo uma instituição especificamente cultural e formativa, para aperfeiçoamento e pesquisa no campo educacional.

Num estudo recente publicado pela UNESCO, sobre a "Preparação do Pessoal Docente" se diz que "os educadores têm tendência para trabalhar isoladamente; raramente têm ocasião de se verem no trabalho uns aos outros, de colaborarem e de compararem suas experiências". Por isso se sugerem alguns meios que se julgam aptos para desenvolver o senso de compreensão social entre os mestres no exercício das suas funções. Entre tais meios se aponta a "Criação de Centros de estudos em que se organizarão conferências, cursos especializados, mesas redondas para trocas de idéias e participação de experiências".

Creio que não seria fora de propósito que a UNESCO tomasse conhecimento da existência do Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei.

3. Vocação e profissão.

Cientemente e de propósito empreguei há pouco, referindo-me ao magistério, a palavra vocação e não profissão. Creio que há profundas diferenças entre o profissional de qualquer ofício ou arte liberal e o mestre ou professor, nem há termo ou medida comum para a avaliação das respectivas grandezas e conceitos. Para servirmo-nos da linguagem matemática, podemos afirmar que magistério e profissão, quer técnica quer liberal, são grandezas incomensuráveis.

Quando há três anos se tratou da majoração do salário mínimo na indústria e no funcionalismo, houve quem inconsideradamente propusesse que fosse estabelecido também o salário do professor e se fixasse o "preço" de uma aula. E foi com justa indignação e mordaz ironia que um jornalista perguntou se havia bom-senso em tabelar o ensino como se tabela o feijão, o toucinho, uma corrida de táxi ou a lavagem de um automóvel. Há algo de comum entre a prestidigitação de uma datilógrafa, a força muscular de um carregador portuário, a perícia de um motorista de caminhão ou mesmo a eficiência de um técnico-agrônomo, de um lado, — e, de outro, o desvelo materno de uma professora primária ou o labor científico de pesquisa de um professor de universidade? Se quiséssemos igualá-los no mesmo plano, cometeríamos o mesmo disparate daquele, que entrou numa livraria perguntando pelo preço de cinco quilos de livros científicos ...

4. Paternidade e sacerdócio.

Não, o professor não é propriamente um profissional, apesar da raiz comum dos vocábulos. Em certo grau e modo ele participa tanto da condição de pai como de sacerdote, visto que o magistério não prescinde do que constitui o elemento essencial de um e de outro. Com efeito, o elemento essencial da paternidade, e especialmente da maternidade, é o amor, e o do sacerdócio é o sacrifício. Ora, o ensino, especialmente da base, exige amor e sacrifício em grau não menor que ciência e técnica.

E é por isso que o Papa Pio XII aconselha que o ensino primário seja preferivelmente confiado a mulheres, porque são elas mais capazes de amar e de sacrificar-se do que os homens, sem que com isto queiramos diminuir o mérito destes.

Eis as palavras do Papa: "Tratando-se da primeira infância, é conveniente que a educação seja confiada à mulher, a qual deve portanto esforçar-se por enriquecer seus dons inatos de intuição e de sentimento por uma importante bagagem de conhecimentos e de experiências oriundas das ciências pedagógicas. Formar uma professora para a infância é como formar espiritualmente uma mãe, com a diferença apenas de que esta última se torna educadora em virtude da própria natureza previdente, enquanto que a educadora por profissão deve desenvolver em si, por seu esforço e boa vontade, a alma maternal".

5. A questão do salário.

Se o magistério participa da natureza da paternidade, se o professor é verdadeiro pai, como a professora verdadeira mãe, então podemos afirmar que, se o artífice, o profissional dá ao seu cliente algo do seu e em troco recebe a conveniente paga, o professor e a professora, à guisa de pais, dão aos seus alunos algo de si, uma parte do seu próprio ser, um pedaço da sua própria alma, se ela pudesse ser repartida em pedaços. E é por isso que o ensino não pode ter salário nem preço justo. Por quanto, com efeito, venderia alguém um braço, um olho, um litro de sangue ou alguns anos da própria vida? Movidos por um grande amor, poderíamos dar todas estas coisas, não porém vender.

Mas não é verdade que o porteiro ou o varredor analfabeto de um banco são, às vezes, mais bem pagos que uma professora primária? Mas isto acontece justamente por estar o trabalho magisterial e educativo muito além de qualquer preço. Ainda que o varredor quantitativamente recebesse muito menos, haveria sempre mais adequação do seu salário com o seu trabalho, do que entre estes mesmos dois fatores em se tratando da professora. Aliás, um dos maiores educadores do Brasil, Everardo Backheuser, diz a respeito: "Quem aspira a retribuições generosas não deve procurar o magistério. Aí o máximo que se obtém são as recompensas da glória, das honras que a sociedade tributa (quando tributa ...) às suas nobres funções. As pessoas com real vocação para educadores suportam com galhardia essa situação, sorriem da miserável retribuição que lhes chega a troco de tão grandes dispêndios de forças. E quantas vezes ainda tiram do magro bolso quantias para melhoria do ensino nas respectivas classes e escolas. O desinteresse pela riqueza, acaso pelas comodidades da vida, ou seja o espírito de sacrifício, precisa ser pois um dos adornos do educador".

6. Rafael e Tobias.

Notai bem que é uma situação extremamente humilhante e embaraçosa, não já para o professor, mas para a comunidade cívica e para os poderes públicos (quando estes e aquela são capazes de avaliar o fato) ver os professores, seus guias, seus mentores espirituais, fazerem fila diante dos guichês da pagadoria para reclamar seus vencimentos, à guisa dos servidores da limpeza das ruas, dos operários do serviço de calçamento de estradas ou dos guardas do policiamento noturno ... A comunidade civil e os seus regidores deveriam sentir-se sumamente honrados em poder oferecer-lhes uma parte do que lhes devem, pois tudo o que lhes devem jamais poderiam dar.

Dever-se-ia repetir a cena descrita na Sagrada Escritura do Antigo Testamento:
Quando Tobias, filho, voltou da sua aventurosa viagem e contou aos pais quantos benefícios lhe dispensara durante a mesma o seu estranho companheiro, o velho Tobias pai puxou o moço pela capa a um canto da casa e entre os dois se travou uma discussão em cochichos, para que não fossem ouvidos pelo arcanjo:
Tobias pai: "Que poderemos dar a ele em recompensa?"
Tobias filho: "Pois é isto o que também eu pergunto: Que lhe poderemos dar? Veja quantos favores me fez: levou-me e trouxe-me são e salvo, juntamente com o dinheiro que fui buscar; salvou-me das fauces do tubarão, que queria devorar-me; ao senhor restituiu-lhe a vista e a mim ainda me fez achar uma linda noiva, da qual prudente e caridosamente antes expulsara o demônio ...
Tobias pai (suspirando como de alívio, ao pensar no que poderia ser a sua velhice, tendo em casa uma nora endiabrada...): "Já por isso só o nosso amigo merece uma grande recompensa".
Tobias filho: "Tenho uma idéia, meu pai: poderíamos oferecer a ele metade de tudo o que eu trouxe ..."

E então ambos foram ter com o anjo Rafael e começaram a rogar-lhe insistentemente, e quase a forçá-lo, que se dignasse aceitar a metade do tesouro trazido de Rages ...

Sim, meus senhores, o magistério traz à sociedade benefícios tão grandes que para ele não há salário, nem mínimo, nem máximo, que se possa dizer proporcionado ou justo, por ser ele, não uma profissão, mas uma vocação, uma paternidade.

7. Ensino, função sacerdotal.

Disse há pouco que o magistério participa também da natureza do sacerdócio. Informa-nos a história da educação que por muito tempo o magistério foi função exclusivamente sacerdotal. E hoje continua sendo um dos três grandes ofícios de que é revestido o sacerdote católico: sacrificar, oferecendo a Missa; santificar, administrando os sacramentos; e ensinar, pelo ministério da palavra.

O professor e a professora, leigos, não podendo dizer Missa nem administrar sacramentos, participam do sacerdócio ensinando. E aí está mais uma razão que corrobora e confirma o que disse há pouco: assim como não se paga uma Missa, que é de valor infinito, nem há preço que corresponda ao benefício de uma confissão ou do batismo, não há também paga adequada para o ensino.

O magistério é na verdade um sacerdócio sublime; e isto nos leva a uma outra ordem de idéias que realçam ainda mais as grandezas da vocação magisterial.

8. Magistério e sociedade.

Pergunta S. João Crisóstomo: "Que há de mais sublime do que governar os espíritos e formar os costumes da juventude?"

Na ordem natural somente a maternidade se pode dizer mais excelente do que o magistério.

Na sociedade organizada e civil nenhuma classe de pessoas é mais benemérita do que a dos professores, pela simples razão de que sem ela nem pode haver sociedade organizada e civil, por dependerem dela todas as demais classes. Não há médico, nem engenheiro, nem técnico, nem padre, que pela própria personalidade intelectual e profissional não seja devedor ao magistério, o qual unicamente é auto-suficiente, dependente somente de si.

Um médico não faz outro médico, a não ser que seja médico-professor e ainda assim, servindo-se de "material" já trabalhado pelo professor simplesmente tal. Do mesmo modo um engenheiro não faz outro engenheiro; mas um professor faz outro professor, como faz ou fornece elementos para todas as demais profissões.

9. Fins remotos do ensino.

E' fácil de perceber por aí que é tremendo o poder que os professores têm em suas mãos, embora dele usem sem ter muita vez inteira consciência disso.

Em primeiro lugar, completam, de certo modo, a obra de Deus Criador, desenvolvendo pela arte educativa as faculdades que Ele infundiu no ser humano. O homem se torna mais homem, quando se instrui; ora este — tornar-se mais homem — depende dos mestres. Com São Paulo podem eles dizer com santa ufania: Somos os ajudantes de Deus. "Dei enim sumus adiutores" (1 Cor 3, 9).

Em segundo lugar, aumentam o número dos conhecedores do próprio Deus, dos Seus adoradores e possuidores da bem-aventurança eterna, quer se trate da ministração da ciência da religião, quer dos demais ramos do conhecimento, os quais, se ministrados honesta e conscienciosamente, não podem deixar de estreitar as relações do homem com o seu Criador, se é verdadeira a célebre sentença de Bacon, que pouca ou falsa ciência pode às vezes afastar de Deus, mas que uma ciência profunda dele só nos pode aproximar.

Em terceiro lugar, o professor e a professora asseguram um futuro melhor para o indivíduo, visto que os conhecimentos adquiridos nos verdes anos não são como a roupa que usou em pequeno e abandonou, por estreita e curta, quando o corpo se alongou e engrossou; mas formam parte inalienável da sua bagagem definitiva, ou melhor, da sua personalidade. Não se diz lá no livro dos Provérbios que o homem, mesmo quando envelhecer, não se apartará do caminho que trilhou na juventude?

Nos joelhos maternos, antes de tudo; à sombra da Igreja, depois; e finalmente nos bancos escolares é que se formam os heróis, os santos, os benfeitores da humanidade.

Simón Bolívar declarou que a Grande Colômbia era devida, não ao seu talento militar, nem ao seu tino político, mas ao seu velho professor, que tinha instilado nele ideais de liberdade e de amor pátrio.

E sobre este assunto quanta coisa se poderia dizer! Poderíamos colher material abundante para uma outra conferência na qual se poderia dissertar do influxo da escola na formação dos grandes homens e dos indivíduos comuns, em geral.

Ao pé de todos os monumentos erguidos em honra dos sábios e dos heróis, deveríamos colocar sempre uma estátua que representasse a professora primária, como a dizer: Tu não serias o que és, se eu não tivesse sido o que fui: tua primeira mestra!

10. Arquitetos de um mundo melhor.

Em quarto lugar, finalmente, na escola os professores forjam o futuro das nações e da humanidade em geral. E' este um fato de tão transcendental importância, que nem podemos avaliá-lo em toda a sua extensão.

No dia 24 de outubro do ano passado, o Papa Pio XII, num discurso dirigido a normalistas, afirmava: "Para assegurar à Igreja e à sociedade um futuro mais sereno, nada pode ser mais decisivo e eficaz do que inclinar-se sobre os tenros rebentos das novas gerações, desde a sua primeira infância, para orientar o seu desenvolvimento na direção da verdade e do bem".

Eis o que fazeis especialmente vós, professoras primárias: inclinais-vos sobre os tenros rebentos das novas gerações para orientá-las na direção da verdade e do bem. Quando estas gerações deixarem de ser novas, poderá — graças a vós — haver mais serenidade para a Igreja, mais paz para a sociedade humana.

E' estribilho rebatido e requentado que o futuro pertence à juventude. Ora, a juventude está nas nossas mãos; é massa que nós estamos amoldando. Logo o futuro está nas nossas mãos. Este fato tem significação profundíssima e deve ter uma repercussão tremenda na nossa própria vida.

11. Consertar o Brasil.

As jeremiadas sobre a situação precária e os males que afligem o mundo em geral, e o Brasil em particular, se avolumam de tal maneira, que já abarrotam as redações dos jornais, sufocam os microfones das estações de rádio e envenenam com o seu amargor todas as conversas. Tudo vai mal e nada há que preste, especialmente o governo . . .

E quando deveríamos todos — para usar uma expressão vulgar — cuspir nas mãos, arregaçar as mangas e pegar rijo na ferramenta, pondo-nos a trabalhar para por um dique à inundação dos males que lamentamos, perdemos o tempo e as energias em críticas estéreis, aguardando um mágico que venha salvar a humanidade periclitante.

E, afinal, quem há de consertar o Brasil, se é que ele precisa e é suscetível de conserto? Serão os políticos? Mas são quase sempre eles os que o enterram. Serão os técnicos? Quem, senão eles, lhe entrava burocraticamente a marcha, em vez de impulsioná-lo para o progresso? Se há quem pode e deve por um remédio eficaz aos males lamentados, estes são os educadores da juventude. Hoje não, amanhã também não, mas depois de amanhã, sim, o Brasil poderá ser tal qual nós hoje quisermos que seja, formando agora os governantes, os legisladores, os magistrados, o povo de amanhã.

Somos nós, os professores, que — talvez inconscientemente — damos feição própria a cada povo, a cada século, a cada civilização.

Se nas primeiras décadas deste século tivesse havido um professorado numeroso, competente e sacrificado, hoje os horizontes da pátria seriam menos carregados.

Se o findar do século presente for para o Brasil próspero e tranquilo, a nós, professores de hoje, caberá, em grande parte, o mérito. Mas não nos serão poupadas acerbas críticas e a execração, quiçá, dos filhos dos nossos alunos, se por nossa ineficiência, males semelhantes aos que hoje afligem a humanidade, infelicitarem também os cidadãos do porvir.

12. Lições da História.

Consultai a história e me dareis razão. O período de maior esplendor da Grécia antiga é assinalado pela atuação de admiráveis mestres, como Sócrates, Aristóteles, Platão. Foram eles que fizeram o século de Péricles, e não vice-versa. Quando, porém, nas escolas gregas as cátedras foram ocupadas pelos cínicos, os céticos, os sofistas, a Grécia deixou de brilhar, e uma nação, que se tinha coberto de glória dispersando os incontáveis exércitos de Ciro e de Dario, caiu sem combate aos pés de Roma, cujas legiões fizeram empalidecer todo o esplendor de Salamina, das Termópilas e de Maratona.

A própria Roma assinou o decreto da sua ruína, quando a educação dos seus filhos foi confiada aos escravos e não mais aos eruditos e austeros retores dos tempos da república. Como poderia o professor escravo e estrangeiro, de uma nação vencida, incutir sentimentos de honra e de justiça nos ânimos juvenis, daqueles cujos pais lhe tinham destroçado a pátria e feito a maior das injustiças, tirando-lhe a liberdade?

Que é que deu tanta glória ao Sagrado Império Romano-Germânico, senão as admiráveis escolas conventuais e as excelentes universidades da Idade Média, onde pontificavam mestres extraordinários, como Alberto Magno, Alexandre de Hales, Duns Scot e Tomás de Aquino? Bem compreendera a importância do ensino um imperador como Carlos Magno, que era analfabeto, mas fazia questão de visitar as escolas, assistir às aulas, castigar pessoalmente os alunos preguiçosos, prestigiando assim o mestre.

Foram os mestres de escola, especialmente, e os professores os que prepararam a Revolução Francesa, e vós sabeis que foi nas universidades de Coimbra e de Paris que os Inconfidentes se imbuíram dos ideais de liberdade e de independência.

Quem preparou o advento do nazismo alemão e do fascismo italiano foram os professores que no final do século passado e no começo do presente enfararam a juventude do seu tempo com as megalomanias de Nietzsche e com as loucuras do seu Zaratustra e com o chauvinismo nacionalista de Gioberti e de Mazzini.

Por outra parte, visitemos os países mais adiantados, cujo progresso admiramos e talvez invejemos, os Estados Unidos, Canadá, os Países Escandinavos, Finlândia, Suíça, França, Inglaterra, e verificaremos que a causa do seu adiantamento está precisamente na sua perfeita organização escolar, no preparo técnico e no prestígio de que gozam os seus mestres, os verdadeiros artífices das transformações sociais que nestas nações se operaram no decorrer dos últimos séculos.

Por aí compreendereis como ninguém jamais fez um mal tão grande ao Brasil, quanto o Marquês de Pombal, quando expulsou de nosso país os jesuítas, que tinham sido seus mestres quase exclusivos nos séculos XVI, XVII e XVIII. Com aquele mal-aventurado gesto Pombal empurrou a nossa história e a nossa civilização de um século para trás.

Sim, prezados ouvintes, nós que ensinamos a história e às vezes, lhe escrevemos os compêndios, talvez não tenhamos reparado que quem faz a história são os nossos alunos, imbuídos de nossas idéias, e somos nós que lhes fornecemos o material e até lhes traçamos os planos.

13. Os do outro lado.

Os comunistas, que são astutos e perspicazes, compreendem, talvez melhor do que nós, o fato da total dependência do porvir de uma nação dos mestres de hoje. Tive oportunidade de verificar as coisas de perto: os governos dos países dominados pelo comunismo, cientes de que não lhes é possível amoldar de acordo com a sua mentalidade a população toda, cujos 90% lhes são contrários, contentam-se e exigem que sejam verdadeiramente comunistas estas três classes de pessoas: os funcionários do Estado, pois, em fim de contas, são eles os que governam; os oficiais do exército e da polícia, pois são eles os que sustentam o governo; os mestres de escola e os professores secundários, pois são eles os que formam os futuros governantes e as futuros oficiais, garantindo, assim a continuação do regime. E um sagaz e eficiente chefe de Estado comunista disse certa vez: "Admito que um sapateiro faça bons sapatos, apesar de não ser comunista, e que um engenheiro monte com perfeição uma usina hidrelétrica, ainda que não pertença ao partido. Mas não me entra na cabeça como um mestre-escola possa formar bons cidadãos do Estado socialista, se ele próprio não for completamente penetrado do pensamento e convicções socialistas".

14. Responsabilidades maiores.

Caros colegas de magistério, tudo o que vos disse até aqui nos faz pensar na nossa enorme responsabilidade, quer perante a nação e a humanidade, quer perante as próprias crianças e os jovens, sobre os quais exercemos uma tremenda, incoercível influência. Se a juventude é moralmente sadia e intelectualmente bem orientada, — não inteiramente — mas em grande parte o mérito é nosso. Em boa parte é nossa a culpa, se se dá o contrário. Flávio Silveira Lobo escreveu há pouco num jornal carioca: "Cada vez que um menino se perde, há um adulto que falhou". Nem sempre, mas muitas vezes esse adulto é o professor ou a professora.

Mas este fato nos comunica também estímulo, para termos na devida conta o magistério e nos compenetrarmos bem da excelsitude da nossa missão.

São os professores os anônimos construtores das grandezas de uma nação, os artífices silenciosos da sua glória, os operários ignorados que na oficina da escola forjam o seu porvir.

Na base de toda a estrutura de um povo está uma escola e no topo da pirâmide dos valores nacionais se encontra uma professora, um educador. Por isso nenhuma instituição cultural de um país é tão importante como a Escola Normal e as Faculdades de Filosofia, quartéis que fornecem à pátria estes soldados sem armas, estes artistas da instrução e da educação, que, segundo São Gregório de Nazianzo, são a arte das artes, a ciência das ciências.

15. O dever dos outros.

Um derradeiro pensamento: de tudo isto se deduz o dever que cabe aos poderes públicos e à comunidade de prestigiar o mestre. Mas para que isto se dê, é preciso que o próprio professorado tome a iniciativa de uma campanha de âmbito universal para a própria valorização. E' que nós somos uma classe social "sui generis": é nossa missão e nosso dever ensinar tudo a todos; diretamente às crianças, indiretamente aos pais e aos próprios governantes. Entre as coisas que lhes devemos ensinar, são os deveres que têm para conosco ...

A publicação da UNESCO, a que me referi no começo desta palestra, diz a este respeito: "A função docente será honrada, se ela for exercida por mestres dotados de uma personalidade irrepreensível, bem preparados para a sua tarefa e altamente qualificados. A comunidade julgará a função docente pela conduta e valor técnico dos que a exercem. E poderá igualmente ser tentada a adotar a idéia que se faz o mestre da sua própria função. Julgamos que as Escolas Normais muito podem fazer para realçar o prestígio da carreira magisterial, fazendo compreender aos seus alunos o grande valor social dos serviços que são chamados a prestar à humanidade".

16. Voz dos alunos agradecidos.

Felizmente, seria injustiça dizer que a função, ou antes, a missão de mestre e professor não seja devidamente apreciada e que não haja ricas poliantéias de hinos de louvor, que a humanidade agradecida ergueu, especialmente nos tempos recentes, a quem lhe serve de guia, carregando à sua frente o brandão do saber. Basta folhear as numerosas páginas da literatura de qualquer país.

Se há na antiguidade um poeta como Horácio Flaco, que se lembra com pouca saudade do seu professor Orbílio Pupilo, a quem chama de Terrível, "plagosum... Orbilium", a causa está principalmente na "ferŭla"¹ e na "scutĭca"², que, segundo o testemunho de um condiscípulo, Domício Marso, o velho mestre romano manejava com excessiva facilidade... Mas em compensação quantos homens há que se recordam com comovida gratidão dos seus preceptores e lhes dedicam páginas de admirável beleza literária!

Paul Renaudin nos fala de Mademoiselle Duret, como um filho falaria da própria mãe, e Rétif de la Bretonne traça um belíssimo retrato do seu velho professor, "le respectable Berthier". E quem é que não leu o poema "L'instituteur"³, de Vítor Hugo, em que o poeta apostrofa os meninos, "gentis algozes", que crucificam o velho mestre mártir cujo cavalete de tortura é a cátedra, à maneira de São Cassiano, o mestre-escola de Roma, a quem mataram na sala de aula os seus próprios alunos a golpes de estilete de escrever?

«Saint et grave martyr changeant de chevalet,
Crucifié par vous, bourreaux charmants, il est
Votre souffre-douleurs et votre souffre-joies»
.

17. «Cornélias, mães de cem Gracos».

E com que respeitosa ternura descreve Humberto de Campos a figura "frágil, doce, triste e silenciosa" da sua professora, a "mestra Marocas"!
"Ao evocar neste momento a sua figura discreta e melancólica, em cuja face dolorida se refletia um drama interior, acodem-me algumas reflexões oportunas, que podem ser ajustadas à história e à vida de quase todas as ... educadoras sem títulos ou recompensas oficiais, Cornélias, mães de cem Gracos, que foram para o serviço da Pátria, dando-se em holocausto cotidiano, centenas de cidadãos. E' de imaginar o que padecem esses corações afeiçoados, tendo de perder, pelo afastamento, cada ano uma dezena desses filhos adotivos ... Os moços em geral são como os pássaros: emplumada a ave, abandona o ninho, que a aqueceu e o bico que a alimentou. E nunca mais, no espaço imenso, reconhece a ave que, quando implume, a agasalhou e protegeu. A professora primária, que nos fez digerir a primeira semente do alfabeto, é essa ave generosa e magnânima, reveladora da imensidade e do mundo".

Cordélia Gross, professora primária de Nova York, descreve este estado de alma, da mestra que se separa dos alunos aos quais instruiu, educou e amou como filhos. Seu artigo, publicado recentemente por uma popularíssima revista, já é só por si uma epopéia e um programa: "Ensinar é amar".

18. O «Mestre».

Mas o maior estímulo para o bom desempenho da missão de ensinar, minhas senhoras e meus senhores, recebemo-lo daquele que disse: "Todo aquele que receber em meu nome um desses pequeninos é a mim que recebe" (Mc 9, 36).

Daquele que é o caminho, a verdade e a vida.

Daquele que é o Mestre por antonomásia: "Magister", como O chamavam simplesmente os que dele se aproximavam.

Ele nos disse um dia: Ide e ensinai!

Quando transpomos a soleira da porta de uma sala de aula, a Sua sombra nos acompanha.

Quando pacientemente nos debruçamos sobre a carteira de uma criança, o Seu olhar complacente nos observa.

Quando desvendamos a luz do saber às mentes tenras dos pequeninos, o Seu amor nos inspira e a Sua mão nos abençoa.

No programa-convite de formatura do ano passado, da Escola Normal Nossa Senhora das Dores, desta cidade, as professorandas colocaram este delicado pensamento: "Senhor, Tu que ensinaste, perdoa que eu ensine, que leve o nome de mestre, que tiveste sobre a terra".

Um educador do século XVII, comentando a palavra de Jesus, "Um só é o vosso mestre, Cristo", diz que todos nós que ensinamos somos uns sub-mestres, "hypodidáscaloi"; diríamos hoje, professores auxiliares ou professores assistentes, de Cristo, que é unicamente mestre catedrático.

19. Toda escola é um farol.

Termino, reportando-me aos faróis do início desta conferência: Nas trevas da ignorância, nas procelas desta vida, no mar borrascoso deste mundo, de que somos navegantes, cada escola é um farol, que espadana luz e aponta um roteiro. Nós somos os seus custódios, os seus zeladores. Não deixemos que o farol se apague. Mantê-lo aceso ou acendê-lo onde não houver é cumprir a mais bela tarefa que nos possa ser confiada na vida: é executar aquela missão, é cumprir aquela ordem que das plagas palestinenses fez chegar aos nossos ouvidos Cristo, o Mestre, o qual, para conservar-nos humildes e para fazer-nos compreender a excelsitude da mestrança, não quis que usássemos títulos pomposos: "Vós, porém, não vos chameis mestres, porque um só é o vosso mestre, Cristo"; mas que, apesar de tudo, se dignou associar-nos ao Seu magistério, dizendo-nos: Ide e ensinai!


NOTAS DO AUTOR DO BLOG

¹  Vara (para castigar as crianças e os escravos)

²  Chicote feito de correia

³  Poema intitulado "Le Maître d' études" do livro "Les Contemplations" de Vítor Hugo.

⁴ CAMPOS, Humberto de. Memórias, p. 160-63. São Paulo: Opus, 1983.


*) Conferência pronunciada no Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei pelo Pe. Luiz Zver, Professor de Filologia Românica na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, publicada pela Revista de Cultura Vozes, Ano LII, fevereiro de 1958, p. 109-123, Petrópolis, RJ.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...