sábado, 20 de novembro de 2010

Doces Recordações da FGV nos Anos 70 > > > Parte 4 > > >


Por Francisco José dos Santos Braga


4º Capítulo: Início do CPM-Curso Preparatório ao Mestrado da FGV

Numa versão apócrifa da Odisséia (“Odysseus und die Schweine oder Das Unbehagen an der Kultur”), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros enfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram de sua nova condição e resistiram desesperadamente aos esforços de Ulisses para quebrar o encanto e trazê-los de volta à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha encontrado as ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos novamente, fugiram numa velocidade que seu zeloso salvador não pôde acompanhar. Ulisses conseguiu afinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele eriçada deu lugar a Elpenoros – um marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos os sentidos mediano e comum, exatamente “como todos os outros, sem se destacar por sua força ou por sua esperteza”. O “libertado” Elpenoros não ficou nada grato por sua liberdade, e furiosamente atacou seu “libertador”:

"Então voltaste, ó tratante, ó intrometido? Queres novamente nos aborrecer e importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos corações sempre a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao sol, eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditações e dúvidas: “O que devo fazer, isto ou aquilo?” Por que vieste? Para jogar-me outra vez na vida odiosa que eu levava antes?"

A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como uma maldição? Tais questões assombraram os pensadores durante a maior parte da era moderna, que punha a “libertação” no topo da agenda da reforma política e a “liberdade” no alto da lista de valores – quando ficou suficientemente claro que a liberdade custava a chegar, e os que deveriam dela gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas.

* in BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, Capítulo 1 (Emancipação), pág. 25-6. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.


Ainda naquele primeiro semestre de 1974 procurei retomar meus estudos da língua alemã, que mais tarde me foram muito úteis, especialmente quando fui a Berlim com bolsa de estudo concedida pelo Instituto Goethe de Brasília em 1999. Na década de 70, o ensino de língua alemã era ministrado sobretudo pelo Instituto Goethe (em geral por professoras alemãs mais idosas), o qual ficava na Rua Augusta, nº 1492, próximo à esquina com a Rua Antônio Carlos.
Para lá me dirigia sempre à noite em dias prefixados, para ouvir as preleções daquelas professoras às vezes pouco simpáticas. O método ainda era muito tradicional, havendo pouquíssima participação ou intervenção dos alunos. Por essa razão, as aulas costumavam ser muito monótonas. Contribuía muito para esse resultado o distanciamento muito grande entre as professoras e os alunos. Por exemplo, tentei localizar algum nome de professora em meus pertences de Alemão e para todo o período que se prolongou até 1978. Pois bem: descobri apenas um nome, o da professora "Frau" Margaretha Speer em 1974. Como material didático, além de livros essas professoras utilizavam também excelente material mimeografado onde também não consta o nome delas. Em compensação, havia umas colegas muito interessantes na classe, dentre as quais se destacavam Maria Cecília, Lídia e outras.
Seja como for, o aluno do Instituto Goethe de então era beneficiado pela adoção de excelente material didático, embora não houvesse ainda os métodos audiovisuais modernos tão revolucionários no ensino da língua alemã, ou se havia, era de uso muito restrito. Em 1974, o Instituto passou a utilizar, além de seu excelente material mimeografado, o kit “Deutsch als Fremdsprache” (Alemão como Língua Estrangeira), de autoria de Korbinian Braun, Lorenz Nieder e Friedrich Schmöe, editado pela Editora Ernst Klett de Stuttgart, disponível ou na Livraria Augusta (Rua Augusta, 1403) ou na Livraria Cultura (no Conjunto Nacional da Av. Paulista), consistindo de dois livros, um de diálogos sobre situações corriqueiras do dia a dia acompanhados de exercícios graduados (tomo I), e o outro, constando de textos literários juntamente com exercícios graduados (tomo II).
Mas o que foi considerado uma revolução foi a adoção de um material didático diferente de tudo até então: os livros de exercícios de estrutura e testes que acompanhavam os referidos tomos I e II apresentavam os textos com lacunas didáticas para serem preenchidas. Algo novo estava na possibilidade de o próprio aluno poder conferir as soluções através da superposição de uma película colorida (Kontrollmaske, em Alemão) sobre a área hachurada (da mesma cor da película) das páginas que ocultava a resposta correta, e o próprio aluno fazer o controle do seu aprendizado, conferindo a sua resposta com a do livro, o que seria impossível a olho nu. Portanto, a metodologia pressupunha que, só depois de preenchida a lacuna, o aluno deveria conferir ou “colar” a resposta correta. A alegria era enorme quando a gente conseguia gabaritar toda a página.

Utilizando essa mesma técnica (da área hachurada ocultando soluções para autoestudo), alguns anos depois, o Prof. Jacob Ancelevicz e eu iríamos escrever um livro chamado Contabilidade Básica - Um Estudo Programado, lançado pela Editora Saraiva em 1979. Esse livro usa o "método do caso" e sua característica principal consiste em simular as operações de uma firma ao longo de todo o livro, exemplificando o sistema contábil das partidas dobradas, a apuração do lucro e a elaboração do balanço patrimonial e da demonstração do resultado.
Além do kit citado, as professoras do Instituto passaram a utilizar também a coletânea intitulada “Ernste und heitere Erzählungen 1” (Contos sérios e alegres 1) , composta de textos literários e exercícios formulados por Heinz Griesbach (já citado no Capítulo II destas Memórias), e o compêndio chamado “Deutschland in Geschichte und Gegenwart” (Alemanha na História e no Presente), de autoria de Erich Zettl. Ambos eram editados pela Editora Max Hueber. Do primeiro primeiro livro supracitado extraio um conto do escritor alemão Heinrich Böll, que muito me impactou na época, denominado Anedota sobre a Queda de Produtividade, que abaixo transcrevo na íntegra, em minha tradução para a língua portuguesa.
Antes, porém, gostaria de tecer algumas considerações sobre esse grande escritor, contextualizando melhor o texto que se irá ler. Heinrich Böll foi um dos principais escitores alemães do século XX. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1972. Ficcionista e ensaísta com destacada atuação política durante toda a sua vida, deixou uma vasta obra, cuja tônica é a luta contra a omissão, a injustiça e a opressão. O engajamento na luta política e a coragem marcaram a vida e a obra desse grande escritor. Defensor implacável dos direitos humanos, anti-militarista convicto e um dos primeiros ativistas em defesa do meio ambiente, Böll transformou o internacional P.E.N.¹ Club, do qual foi presidente por vários mandatos consecutivos, em um fórum para multiplicar suas ideias humanistas e pacifistas. Até pouco antes de sua morte ainda participava ativamente de manifestações anti-nucleares. Pela sua postura inabalável, pelo seu papel na divulgação dos ideais democráticos e pelo seu ativo engajamento nas causas pacifistas, Heinrich Böll foi eleito pela Heinrich Böll Stiftung (Fundação Heinrich Böll) o símbolo da integridade humana. (Cfr. www.boell-latinoamerica.org/web/11.html)
Heinrich Böll: Anedota sobre a Queda de Produtividade ²

Heinrich Böll, 1963
Num porto, numa costa oeste da Europa, um homem pobremente vestido está deitado, tirando uma soneca em seu barco de pesca. Neste momento, um turista chiquemente vestido está colocando um novo rolo de filme colorido em sua máquina fotográfica para fotografar a imagem idílica: céu azul, mar verde com cristas de onda alvas e pacíficas, barco preto, boné vermelho de pescador. Click. Outra vez: click, e como todas as boas coisas vêm em três, uma terceira vez: click. O ruído áspero, quase hostil acorda o cochilante pescador, que sonolento se ergue, sonolento procura às apalpadelas seu maço de cigarros; mas, antes de aquele ter encontrado o que procura, já o solícito turista lhe segurou o maço diante do nariz, não exatamente lhe enfiou o cigarro na boca, porém colocou-lhe na mão, e um quarto click, este do isqueiro, conclui a pressurosa cortesia. Devido àquele excesso — mal mensurável, jamais verificável — de pronta cortesia, surgiu uma situação embaraçosa, marcada por irritação, que o turista tenta transpor através de um bate-papo.
“O sr. vai fazer uma boa pesca hoje.”
Aceno de cabeça do pescador, indicando que não.
“Mas me disseram que o tempo está favorável.”
Meneio de cabeça do pescador, indicando que sim.
“Afinal: o sr. não vai por-se ao largo?”
Movimento de cabeça do pescador indicando que não, nervosismo crescente do turista. Com certeza, a felicidade do homem pobremente vestido importuna-o profundamente. Corrói-lhe a aflição pela oportunidade perdida.
“Oh, o sr. está se sentindo bem?”
Por fim, o pescador passa da linguagem de sinais para a palavra realmente falada. “Eu estou me sentindo bem,” diz. “Jamais me senti melhor.” Ele se levanta, estica-se, como se quisesse demonstrar quão atlética era sua compleição. “Eu estou me sentindo maravilhosamente.”
A expressão facial do turista se torna cada vez mais infeliz, e ele não mais é capaz de reprimir a pergunta que, por assim dizer, ameaça explodir-lhe o coração: “Mas, então, por que o sr. não se põe ao largo?”
A resposta vem curta e grossa. “Porque hoje de manhã já o fiz.”
“A pescaria estava boa?”
“Estava tão boa que não preciso ir mais uma vez: peguei quatro lagostas em minhas cestas, quase duas dúzias de cavalas…”
O pescador, finalmente desperto, quebra o gelo e bate com calma no ombro do turista. A expressão facial preocupada do último parece-lhe uma expressão de inapropriada, na verdade, porém, tocante aflição.
“Eu tenho até bastante para amanhã e depois de amanhã”, diz, a fim de aliviar a alma do estranho. “O sr. fuma um dos meus?”
“Sim, obrigado.”
Cigarros estão sendo postos nas bocas, um quinto click; o estranho, abanando a cabeça em sinal negativo, senta-se na beira do barco, tira a câmera da mão, pois agora precisa de ambas as mãos para dar ênfase à sua fala.
“Eu não quero me intrometer nos seus assuntos pessoais”, diz, “mas apenas imagine: o sr. se põe ao largo hoje uma segunda, uma terceira, talvez até uma quarta vez e o sr. pegaria três, quatro, cinco, talvez até dez dúzias de cavalas… imagine só!”
O pescador acena com a cabeça em sinal afirmativo.
“O sr. se poria ao largo”, continua o turista, “não só hoje, mas amanhã, depois de amanhã, certamente, em todo dia favorável duas, três, quatro vezes — sabe o que aconteceria?”
O pescador acena com a cabeça em sinal negativo.
“O sr. poderia comprar para si um motor, em dois anos um segundo barco, em três ou quatro anos teria talvez um pequeno cúter; com dois barcos ou o cúter, o sr. pescaria muito mais, naturalmente — um dia o sr. teria dois cúters; o sr. iria…”, o entusiasmo embarga-lhe a voz por alguns instantes, “o sr. construiria um pequeno frigorífico, talvez um defumadouro, mais tarde uma fábrica de marinadas, fazer voos circulares com um helicóptero próprio, reconhecer cardumes e dar ordens a seus cúters por rádio. O sr. poderia adquirir os direitos de pesca do salmão, abrir um restaurante de frutos do mar, exportar lagosta sem intermediário diretamente para Paris — e então…”, novamente o entusiasmo embarga a voz ao estrangeiro.
Acenando com a cabeça em sinal negativo, profundamente desolado, já quase privado de suas alegrias consagradas ao lazer, olha para a maré rolando pacificamente para dentro do porto, na qual os peixes não capturados saltam alegremente.
“E então”, diz ele, mas de novo o entusiasmo embarga-lhe a voz.
O pescador bate-lhe nas costas, como se faz com uma criança quando se engasgou. “O que então?”, pergunta baixinho.


Vejamos agora o texto original da estória do pescador de Heinrich Böll:

Anekdote zur Senkung der Arbeitsmoral

Heinrich Böll, 1963

In einem Hafen an einer westlichen Küste Europas liegt ein ärmlich gekleideter Mann in seinem Fischerboot und döst. Ein schick angezogener Tourist legt eben einen neuen Farbfilm in seinen Fotoapparat, um das idyllische Bild zu fotografieren: blauer Himmel, grüne See mit friedlichen schneeweißen Wellenkämmen, schwarzes Boot, rote Fischermütze. Klick. Noch einmal: klick. Und da aller guten Dinge drei sind und sicher sicher ist, ein drittes Mal: klick.

Das spröde, fast feindselige Geräusch weckt den dösenden Fischer, der sich schläfrig aufrichtet, schläfrig nach einer Zigarettenschachtel angelt; aber bevor er das Gesuchte gefunden, hat ihm der eifrige Tourist schon eine Schachtel vor die Nase gehalten, ihm die Zigarette nicht gerade in den Mund gesteckt, aber in die Hand gelegt, und ein viertes Klick, das des Feuerzeuges, schließt die eilfertige Höflichkeit ab. Durch jenes kaum messbare, nie nachweisbare Zuviel an flinker Höflichkeit ist eine gereizte Verlegenheit entstanden, die der Tourist - der Landessprache mächtig - durch ein Gespräch zu überbrücken versucht.

"Sie werden heute einen guten Fang machen."
Kopfschütteln des Fischers.

"Aber man hat mir gesagt, daß das Wetter günstig ist."
Kopfnicken des Fischers.

"Sie werden also nicht ausfahren?"
Kopfschütteln des Fischers, steigende Nervosität des Touristen. Gewiß liegt ihm das Wohl des ärmlich gekleideten Menschen am Herzen, nagt an ihm die Trauer über die verpaßte Gelegenheit.

"Oh, Sie fühlen sich nicht wohl?"
Endlich geht der Fischer von der Zeichensprache zum wahrhaft gesprochenen Wort über. "Ich fühle mich großartig", sagt er. "Ich habe mich nie besser gefühlt." Er steht auf, reckt sich, als wolle er demonstrieren, wie athletisch er gebaut ist. "Ich fühle mich phantastisch."

Der Gesichtsausdruck des Touristen wird immer unglücklicher, er kann die Frage nicht mehr unterdrücken, die ihm sozusagen das Herz zu sprengen droht: "Aber warum fahren Sie dann nicht aus?"
Die Antwort kommt prompt und knapp. "Weil ich heute morgen schon ausgefahren bin."

"War der Fang gut?"
"Er war so gut, daß ich nicht noch einmal auszufahren brauche, ich habe vier Hummer in meinen Körben gehabt, fast zwei Dutzend Makrelen gefangen..." Der Fischer, endlich erwacht, taut jetzt auf und klopft dem Touristen beruhigend auf die Schultern. Dessen besorgter Gesichtsausdruck erscheint ihm als ein Ausdruck zwar unangebrachter, doch rührender Kümmernis.
"Ich habe sogar für morgen und übermorgen genug", sagt er, um des Fremden Seele zu erleichtern. "Rauchen Sie eine von meinen?"
"Ja, danke."

Zigaretten werden in die Münder gesteckt, ein fünftes Klick, der Fremde setzt sich kopfschüttelnd auf den Bootsrand, legt die Kamera aus der Hand, denn er braucht jetzt beide Hände, um seiner Rede Nachdruck zu verleihen.

"Ich will mich ja nicht in Ihre persönlichen Angelegenheiten mischen", sagt er, "aber stellen Sie sich mal vor, Sie führen heute ein zweites, ein drittes, vielleicht sogar ein viertes Mal aus, und Sie würden drei, vier, fünf, vielleicht gar zehn Dutzend Makrelen fangen - stellen Sie sich das mal vor."
Der Fischer nickt.

"Sie würden", fährt der Tourist fort, "nicht nur heute, sondern morgen, übermorgen, ja, an jedem günstigen Tag zwei-, dreimal, vielleicht viermal ausfahren - wissen Sie, was geschehen würde?"
Der Fischer schüttelt den Kopf.

"Sie würden sich spätestens in einem Jahr einen Motor kaufen können, in zwei Jahren ein zweites Boot, in drei oder vier Jahren vielleicht einen kleinen Kutter haben, mit zwei Booten und dem Kutter würden Sie natürlich viel mehr fangen - eines Tages würden Sie zwei Kutter haben, Sie würden...", die Begeisterung verschlägt ihm für ein paar Augenblicke die Stimme, "Sie würden ein kleines Kühlhaus bauen, vielleicht eine Räucherei, später eine Marinadenfabrik, mit einem eigenen Hubschrauber rundfliegen, die Fischschwärme ausmachen und Ihren Kuttern per Funk Anweisungen geben. Sie könnten die Lachsrechte erwerben, ein Fischrestaurant eröffnen, den Hummer ohne Zwischenhändler direkt nach Paris exportieren - und dann...", wieder verschlägt die Begeisterung dem Fremden die Sprache.

Kopfschüttelnd, im tiefsten Herzen betrübt, seiner Urlaubsfreude schon fast verlustig, blickt er auf die friedlich hereinrollende Flut, in der die ungefangenen Fische munter springen. "Und dann", sagt er, aber wieder verschlägt ihm die Erregung die Sprache.
Der Fischer klopft ihm auf den Rücken, wie einem Kind, das sich verschluckt hat.
"Was dann?" fragt er leise.


Sobre esse texto de Heinrich Böll, acho que cabem algumas observações. A meu ver, o autor não estava interessado no dilema entre “trabalhar ou não trabalhar”. Acredito que esse texto foi motivado por considerações acerca da forma como nossa sociedade interage com seu meio ambiente natural. A estória sobre o pescador ilustra como processos sociais dão forma ao estado em que se encontram os recursos naturais. Já existem até alguns estudos quantitativos inspirados no texto acima, de Heinrich Böll, provando que “métodos matemáticos podem ajudar a traçar futuros sustentáveis — se forem utilizados com uma atitude respeitosa para com outros domínios do conhecimento". (Cfr. “Model Ensembles for Natural Resource Management: Extensions of Qualitative Differential Equations Using Graph Theory and Viability Theory” (em PDF) na Internet, dissertação apresentada em 30/09/2005 por Klaus Eisenack à Universidade Livre de Berlim. A referida tese foi escrita no Departamento de Análise de Sistemas Integrados no Instituto Potsdam para a Pesquisa do Impacto Climático.)

Como explicado na Parte 1 dessas "memórias" dos anos 70, o CPM-Curso Preparatório ao Mestrado da FGV seria oferecido no primeiro semestre de 1974 a todos os que precisavam, por algum motivo, fazer uma reciclagem de todo o curso de graduação em Administração em apenas 6 meses, para então se candidatarem ao ingresso no Mestrado da FGV. Tal era o caso de economistas, engenheiros e advogados, ou até mesmo professores de Administração de universidades, mas que precisavam de maior embasamento nas disciplinas que lecionavam ou que necessitavam uma reciclagem de seus conhecimentos. O meu caso, como mostrei, era mais complicado, porque eu era bacharel em Letras, considerada área não-afim à Administração de Empresas. Mas eu não era o único egresso de Letras em dificuldade. Havia outra moça na mesma situação. Ambos corríamos o risco de sermos excluídos. À certa altura do curso, ela desistiu de continuar naquela incerteza de sucesso, deixando-me só. Tendo sido aprovado nos exames de admissão ao CPM, criei uma situação de fato e de direito, porque faltou à FGV uma providência essencial: a de só permitir a participação, no certame, de candidato graduado nas áreas afins. Tendo indagado alguns funcionários da Secretaria Escolar, recomendaram-me ser discreto, não provocar a Direção de Escola a se definir e aguardar a iniciativa da Escola de glosar ou não o meu nome durante o curso. Foi exatamente o que fiz.
Foi assim que, no primeiro trimestre de 1974, comecei a dedicar-me, em tempo integral, às disciplinas oferecidas pelo CPM, a saber, Revisão Matemática, Estatística, Análise Mercadológica e Administração Contábil Financeira, todas com duração de 45 horas/aula (equivalentes a 3 créditos) cada, ocasião em que tive o meu primeiro contato com o "método do caso", implementado pela Harvard e adotado pela Fundação Getúlio Vargas, que se transformou em marca distintiva desta última, por causa de sua eficácia. Os casos eram situações reais ou próximas à realidade que precisavam de uma solução por parte de um ou vários estudantes.
A primeira disciplina — Revisão Matemática aos cuidados do Prof. José Rappaport, do DMQI-Departamento de Métodos Quantitativos e Informática — era composta das seguintes unidades programáticas: noções sobre conjuntos, funções, limites, derivadas, máximos e mínimos, bem como integrais. O material didático era muito bom, tendo sido preparado pelos Profs. Pedro Alberto Morettin e Wilton de Oliveira Bussab, que — parece — constituiria capítulos de um livro a ser publicado.
Gostava tanto de Matemática, que assisti além disso, como aluno ouvinte, às aulas de outro professor, Prof. Sebastião Medeiros da Silva, que mais tarde em Brasília encontrei como funcionário do Ministério do Trabalho. Na sua disciplina, vimos funções, domínio da função, regras de derivação, função de Gauss e de Cobb-Douglas, matrizes, limite da função e derivadas, bem como cálculo diferencial, pelo menos.
A disciplina de Estatística Aplicada oferecida pela Prof. Lígia Siniscalco de Oliveira Costa, também do DMQI, cobriu método estatístico, amostra, cálculo das probabilidades, modelos de distribuição de probabilidades, amostragem, estimação, testes de hipóteses e correlação linear. Para leitura suplementar foi entregue material desenvolvido pelo Prof. Norberto Antônio Torres.
A disciplina Análise Mercadológica foi ministrada pelo Prof. Sérgio Roberto Dias do Departamento de Mercadologia. Cobriu o sistema mercadológico, classificação de bens, modelos de comportamento do consumidor, curva de ciclo de vida do produto, segmentação e dimensionamento do mercado, bem como composto mercadológico (planejamento mercadológico do produto, determinação e administração de preços, decisões sobre distribuição e sobre o composto promocional).
A disciplina Administração Contábil Financeira ficou a cargo do Prof. Frediano Quilici do Departamento COFINCO ou CFC-Contabilidade, Finanças e Controle, autor de precioso material didático que conseguia fazer-nos navegar com a maior desenvoltura pelos difícieis meandros da contabilidade. Dentre muitos trabalhos da sua autoria, posso citar "Fluxo de Caixa", "Fluxo de Recursos" e "Avaliação de Estoques", entregues durante a disciplina. Também tivemos a felicidade de conhecer, através de Frediano, material produzido por eminentes professores da Michigan State University e consultores técnicos da EAESP-FGV, dos quais ele certamente tinha sido aluno, tais como Jack J. Kempner, Meyer Stilman, Leonard Hall, etc. Também cabe aqui mencionar o excelente material didático da autoria do Prof. Ivan Pinto Dias, o "IPD", que também nos foi dado a conhecer na ocasião, denominado "A Análise das Demonstrações Financeiras" (que seria parte de seu livro "Princípios de Administração Contábil"), bem como as excelentes traduções e adaptações, feitas por esse mestre, de capítulos do livro "Principles of Accounting, Introductory" de Finney e Miller. "Frediano”, como carinhosamente o tratávamos, sem qualquer estranhamento por parte dele, era um ser humano admirável. (Aos outros professores devíamos usar um tratamento mais formal, chamando-os de “mestres”.) Sempre alegre, bonachão, muito gordo e sempre aguardando um convite para um cafezinho. Sua simpatia para comigo era tão grande que chegou a ser meu avalista no aluguel de um apartamento, poucos anos mais tarde. Suas aulas eram aguardadas com ansiedade. Nós, seus alunos, o reverenciávamos como alguém superdotado, porque sua disciplina dependia de uma igualdade entre débitos e créditos, não admitindo uma "conta de chegada", pelo menos em teoria. Seu curso ia desde balanço patrimonial e demonstração do resultado (demonstração de lucros e perdas) até demonstração de origens e aplicações de recursos (ou fluxo de fundos) e fluxo de caixa, tudo isso calcado sobre o "método do caso".
As duas últimas disciplinas eram: Administração da Produção (Prof. Claude Machline) e Microeconomia (Prof. Eduardo Suplicy).
 
Se a memória não me trai, eram os seguintes, dentre outros, os estudantes matriculados no Curso Preparatório ao Mestrado naquele primeiro trimestre de 1974: Edson Sebastião Barrichello, Fernando Montanher, Jair Poeiras Assunção (Londrina-PR), Ricardo Xavier Simões, Sílvia Frank e Maria Luíza Barroso (São Paulo-SP), Cléber Pinheiro de Aquino, Adalberto Bezerra e Maricy (cearenses), Adelar Francisco Baggio (Ijuí-RS), Nilton Gomes Paz (“Criciúma”) e Jaime von Loch (Criciúma-SC), Oscar Malvessi (atualmente, professor com PhD da FGV, autor de "Criando Valor para o Acionista", "Project Finance no Brasil: Fundamentos e estudo de casos", entre outros), Pauletti, Ariolli, Mauro Boscardin, James Pavan e Afonso José de Matos (Caxias do Sul-RS), Paulo Roberto Maia Cortes (“Buda”) (Curitiba-PR), Domingos Martins, Watanabe, Fernando Valente, Luciano (Motta de Carvalho?), Nelson Machado (ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão de 19.11.2004 a 22.03.2005 e ministro da Previdência Social de 21.07.2005 a 29.03.2007 do Governo Lula e atual Secretário Geral do Ministério da Fazenda), Vera Thorstensen (Assessora Econômica da Missão do Brasil em Genebra desde 1995 e professora de Política de Comércio Internacional na EAESP/FGV em São Paulo), José Fernando Calil, Mário Prata, Álvaro, Laura Gallucci, entre outros.

1º de fevereiro de 1974, sexta-feira, às 8h 50min: no Edifício Joelma, localizado na Avenida Nove de Julho, 225 (hoje Rua Santo Antônio, 200, onde se localizou também em setembro e outubro de 2010 o Comitê Central do PSDB), irrompeu no 12º andar um princípio de incêndio criminoso, conforme se comprovou mais tarde, aparentemente causado pelo curto-circuito em um aparelho de ar condicionado e talvez devido à sobrecarga elétrica. Esse aparelho, segundo se constatou, estava ligado à fiação de outro pavimento, de forma que seria impossível desligá-lo com rapidez. Quase 800 pessoas se encontravam no prédio no momento do incêndio. Do primeiro ao décimo andar estavam situados os estacionamentos para veículos. Do décimo primeiro ao vigésimo quinto andar havia escritórios de um grande banco e várias empresas. As escadas Magirus do Corpo de Bombeiros só atingiam o 13º andar, o que dificultou o trabalho dos Bombeiros e o salvamento das vítimas. Logo o fogo atingiu os andares superiores do Joelma. Somente os que estavam abaixo do princípio do incêndio e os que fugiram para o terraço do edifício conseguiram salvar-se das chamas. Os que se encontravam acima do 13º andar tentaram atingir as escadas Magirus, improvisando cordas e descendo perigosamente, de andar em andar, pelo lado de fora, buscando atingi-las. Muitos caíram, voando para a morte. Às 10h 30min o fogo estava extinto.

Pois bem: um de meus colegas do CPM estava presente a esse incêndio, tendo escapado da morte simplesmente por ter-se dirigido ao terraço do edifício Joelma, donde foi resgatado por um helicóptero. Seu nome era Cléber Pinheiro de Aquino, nascido em Maracanaú, Ceará. Tomei conhecimento de sua morte ocorrida recentemente, em 2/4/2010, uma Sexta-Feira da Paixão. Era professor aposentado da FEA-Faculdade de Economia e Administração/USP. Cléber Aquino foi o organizador da obra "História Empresarial Vivida" em 5 volumes editados pela Gazeta Mercantil, onde recolheu depoimentos de empresários brasileiros bem sucedidos (1986).

Por essa ocasião, após um curto período de aprendizado no CPM, comecei a sentir-me um peixe fora d' água na praia da Administração. De repente, instalou-se em mim um sentimento de ter nadado, nadado para morrer na praia. Acho que contribuiu para esse desagradável sentimento-de-inaptidão-para-a-coisa o fato de não ter a formação específica para aquele curso e meus colegas me discriminarem de certa forma. Bem no meu íntimo, algo monstruoso começou a tomar forma: 'Por que diabos tenho que fazer este curso? Para que frequentar um curso que traz mais problemas a mim do que a qualquer outro colega? Após a conclusão deste curso e do Mestrado a seguir, a conclusão lógica é de que eu vá adotar a vida acadêmica como carreira: estou disposto a pagar o preço? Vale a pena perder quatro anos de minha vida perseguindo um ideal que pode, em última instância, não ser adequado a mim? Por que diabos devo dedicar-me em tempo integral às disciplinas do curso, quando lá fora outras pessoas mais pragmáticas ajuntam seu pé-de-meia, mais preocupados com o seu ganha-pão e com o seu futuro?'
Dentro de mim, outro sentimento me recriminava: 'Você vai amarelar na hora H? Vá em frente e mostre a todos eles quem é você e do que é capaz.' O argumento fatal e definitivo, nesse transe, vinha de Antônio Gonçalves Dias, que, na Canção do Tamoio, coloca na boca de velho pajé o conselho a seu jovem filho:

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

Segue-se uma série de conselhos, concluindo com a célebre exortação ao filho:

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.

Como o índio cuja resposta à tentativa de escravização é a luta, eu também resistirei — pensei então —, sendo a luta, para mim, condição maior, fator de minha dignidade e justificativa de minha própria existência. Qualquer que seja a dificuldade do momento, por maior que seja o desânimo diante do difícil empreendimento, está tomada a decisão de lutar com toda a minha energia contra esse instinto de morte que me quer dominar. Toda manhã, ao sair da cama, pensava cá com os meus botões, repetindo em voz alta: "Sê bravo, sê forte!"

Recordo-me ainda de que, simultaneamente aos estudos da FGV, decidi praticar natação por ser uma modalidade de esporte, a um só tempo, útil e recreativa. Sobretudo para aliviar a tensão e o estresse causado pela expectativa de auto-superação requerida nos trabalhos e exames da FGV. Praticamente todos os dias aproveitava o intervalo entre as aulas ou tarefas de casa e dirigia-me à ACM-Associação Cristã de Moços — nosso sucedâneo para YMCA-Young Men's Christian Association — para exercitar-me nos vários tipos de natação, dando preferência ao nado crawl. A ACM ficava e ainda hoje está sediada nas proximidades do Teatro de Cultura Artística, ou mais exatamente, na Rua Nestor Pestana, nº 147. Está provado que o estresse prejudica a concentração e leva à má administração do tempo, mas eu não estava ciente dessas implicações quando frequentei as excelentes instalações da ACM, sob a supervisão de instrutores especializados, nem quando procurei na natação um derivativo para a ideia fixa ou tensão, provocadas pelo acúmulo das tarefas escolares.


¹ P.E.N. é abreviatura de Poets, Essayists and Novelists (poetas, ensaístas e novelistas). O clube internacional desses escritores foi fundado em 5/10/1921 pela escritora inglesa Catherine Amy Dawson Scott, visando defender a liberdade de expressão e estabelecer uma comunidade internacional de escritores. O novelista e dramaturgo inglês John Galsworthy (ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1932 "por sua distinguida arte de narração que assume sua mais elevada forma em "The Forsyte Saga") foi seu primeiro presidente. Atualmente, o PEN Club é composto por 144 centros em 102 países. O seu presidente atual é o Jiří Gruša, poeta e político tcheco.
Tendo aderido aos objetivos e princípios do PEN Club, o PEN Clube do Brasil, fundado em 2/4/1936 na cidade do Rio de Janeiro, integra o sistema do PEN Internacional, sediado em Londres. (N.A.)

² Ingl.: "Anecdote Concerning the Lowering of Productivity" ou "Anecdote to the Decline of Work Ethic". Essa história, com suas diferentes adaptações, tem tido ampla circulação pela Internet, bem como tem sido citada em muitos livros e trabalhos eruditos. Numa das versões mais populares, o turista é apresentado como um norte-americano e o pescador, um mexicano.




* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

Nilton Gomes Paz (ex-professor da EAESP-Fundacao Getulio Vargas) disse...

Oi Francisco, boa noite

Foi legal. As partes 1 e 2 já as havia lido. Desconhecia, porém, as partes 3 e 4.
Lógico alguns detalhes da tua vida fiquei conhecendo aqui. Surpreso por nunca ter percebido tua obstinação pela lingua alemã, a qual tenho incrível vontade de aprender. E VOU.

Estou feliz em lembrar do Frediano. Quando eu comecei a dar aula na GV, por introdução do Jacob, o Frediano me deu incríveis orientações, algumas de morrer de rir, como aquela na minha primeira aula no início de 76: eu me deliciando em expor depreciação, um japonês FDP, me pergunta assim: Mestre.
E eu: Pois não.
O japonês FDP lascou: Como é que se deprecia um animal?
Eu me saí desta, mas depois levei a questão pro Frediano.
Relatado o fato, QUILICI falou: Não sei. Nunca contabilizei japonês. Manda este japonês às favas;animal é semovente.

Outro dia vou ler o restante dos teus artigos.
Uma nota importante: As ferramentas que eu mais usei na minha vida profissional foram (e são) aqueles livrinhos do IPD, sobre relação de CVL.

Francisco, acredito no teu relato do incêndio do Joelma, o ano foi de 1975. Eu tive a infelicidade de assistir ao filme dos bombeiros no original, isto é, cenas reais e completas, com os corpos batento no chão, iguais a bolas, isto quando eu trabalhei no Metrô, e tinhamos sistematicamente cursos preventivos de incêndio. Vi os do Joelma e do Andraus na São João, este sim em 74.
Meu caro Francisco, como foi bom recordar. Vamos programar a vinda tua e da Rute pro Sul.
Um abração,
Nilton