quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Discurso proferido por ocasião do lançamento do livro "Anita – uma vida a serviço do amor" (à guisa de prefácio)


Por Francisco José dos Santos Braga


Estamos reunidos, nesta linda noite de 3 de novembro de 2012, para brindar o lançamento do segundo livro da autoria da escritora são-joanense Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga, intitulado “Anita – uma vida a serviço do amor”, dedicado à vida de sua querida mãe, Ana Braga Lopes, carinhosamente conhecida por "Anita" pelos são-joanenses. A autora, minha prima e cunhada, faz elogio das virtudes de sua mãe, rememorando os doces momentos vividos a seu lado e trazendo a lume inúmeros testemunhos da própria Anita e de pessoas amigas que a conheceram, enriquecendo desta forma o seu trabalho.


Convidado para saudar a autora neste encontro, quero dizer que ela, que hoje nos brinda com a biografia de sua mãe, com seu olhar profundo e terno das etapas vividas e vencidas por essa grande mulher, já se impôs no campo literário com outro livro da sua autoria: “Dona Delfina, uma pérola em Águas Santas”, de 2010. 

Essa singela homenagem que a filha presta à memória de sua mãe ocorre no momento em que todos comemoramos o centenário do nascimento de Anita (nascida em 30/10/1912), que, de 1932 a 1952, teve 11 filhos: “Eduardinho”, Maurício, Álvaro Bosco, Eduardo, Ana Maria (primeira), Celso, Ana Maria (segunda), Francisco, Laura, Maria do Carmo e Fernando.  Embora seja visível, em nossos olhares, o pesar pela ausência de Anita, consola-nos a lembrança amiga, alegre e confortante dessa mulher, que dignificou a condição feminina, honrando a sua família e contribuindo com sua laboriosa existência para a sociedade das cidades que escolheu para viver. Se aqui entre nós estivessem, não apenas a saudosa biografada Anita, mas também outras pessoas saudosas, tais como seu marido Miguel, seus sogros Eduardo e “Donana”, seus pais “Nhonhô” e “Zefina”, seus filhos Ana Maria (primeira), Maurício, Eduardinho, Álvaro Bosco e tantos outros que já se foram, certamente todos eles se encheriam de orgulho pelo trabalho de recuperação histórica feita por sua parenta Maria do Carmo, o qual oferece ao leitor um excelente quadro da vida privada brasileira ao longo do século XX.

Destaco aqui algumas referências citadas no livro “Anita – uma vida a serviço do amor”, que também fizeram parte de minha experiência. Lembro-me de ter visto Francisco e Ana Maria (segunda) na Procissão do Enterro como figurantes por volta de 1954, representando Adão e Eva, respectivamente, e de ter constatado o capricho com que foram trajados por sua prestimosa mãe. Guardo ainda em minha memória a figueira que ornamentava o quintal da casa de Miguel e Anita, em frente à igreja de Nossa Senhora do Carmo, hoje pertencente a Dolores Olívia Ferraz, viúva do Eduardinho. O sabor de seus figos era algo indescritível e tia Anita fazia questão de que saboreássemos alguns, quando passávamos por sua casa, cuja entrada dava para a Rua Direita. Eu próprio presenciei o que é relatado pela autora: “quanto mais Anita os presenteava, mais a figueira se enchia de figos verdes e maduros.” São doces recordações.

Mas não só de boas recordações é feita a vida. Anita sofreu muito também, especialmente com úlcera varicosa em suas pernas pelo espaço de aproximadamente 40 anos. Sua filha relata um fato que se passou em 1951: quando Anita foi acometida por uma inflamação da pleura, Dr. Ivan de Andrade Reis (1910-1982), constatada a enfermidade, medicou-a adequadamente, restabelecendo-lhe a saúde. Também relatou outro fato envolvendo Dr. Ivan, que foi uma hemorragia interna que acometeu sua mãe, após o parto de Fernando em julho de 1952. A autora relata ainda que, em 1965, Dr. João Braz de Carvalho (1926-2005), natural do distrito de São Miguel do Cajuru e amigo do Eduardinho, residindo na cidade de Colônia, na Alemanha, ao visitar São João, encontrou Anita se restabelecendo da operação de varizes a que se submetera em Belo Horizonte, “se interessou pela sua enfermidade e iniciou alguns procedimentos que amenizaram, por um bom tempo, esse sofrimento de Anita.”  Finalmente, a autora relembra a acolhida que seus pais davam anualmente à Nossa Senhora Visitadora em sua casa. Numa dessas ocasiões, contou-me tia Olga Braga Teixeira que a imagem saiu da residência de Dr. Antônio de Andrade Reis (1882-1947) e D. "Bielinha" e veio em procissão até à residência de Miguel e Anita. Segundo Olga, ambos os casais eram católicos fervorosos e observavam com escrúpulo o que recomendava a Igreja.

Outras singelas recordações guardo só em meu coração. Lembro-me de ter ido ao Rio das Mortes acompanhado por tia Anita para conhecer a casa que pertenceu à sua mestra, profª D. Ernestina Pacheco de Barros. Lembro-me também de tê-la levado a Belo Horizonte para privar de sua afável companhia. Doce recordação é ainda o carinho com que era recebido em sua casa, tanto aqui em São João del-Rei, quanto nos bairros de Anchieta e Serra em Belo Horizonte. Finalmente, lembro-me de que ela jamais deixou de cumprimentar-me por determinada vitória particular e pelo transcurso de meu aniversário ou do Natal.

Mesmo conhecendo os malfeitos de nós sobrinhos enquanto crianças, não há nenhum que ela tenha censurado, porque entendia ser inadequada uma interferência na educação de nossos pais. Antes, esse seu modo de proceder evitou atritos entre as famílias individuais, aumentando ainda mais o respeito de todos por sua sabedoria e habilidade no trato das relações humanas.

De um fato lembro-me com saudade, que mostra a elevada consideração que Anita tinha por mim, seu sobrinho, e pela minha querida Rute, por quem ela tinha uma queda toda especial, admirando sua voz e tratando-a carinhosamente por Rutinha.  Certa feita, no dia 8 de novembro de 2002, apresentou-se no Teatro Dom Silvério em Belo Horizonte o coral Trovadores da Mantiqueira, dirigido por Frei Joel Postma o.f.m., cantando e encenando a cantata “Legenda de Santa Clara”, composta pelo regente. Tínhamos sido convidados para dela participar, eu para acompanhá-lo ao piano e Rute para representar a mãe de Santa Clara. Nossa agenda era fazer uma pequena "tournée", abrangendo três cidades: Belo Horizonte, Divinópolis e Juiz de Fora, em três dias consecutivos. Só convidei duas pessoas de Belo Horizonte para assistir à cantata: Cristina Charbel e tia Anita. A primeira justificou a sua ausência por achar-se doente na ocasião. Entretanto, Anita lá esteve, acompanhada por seus queridos filhos Celso e Laura. Não posso deixar de mencionar que fiquei surpreso, pois não esperava que ela pudesse superar os inconvenientes de comparecer àquele evento, à noite, num dia de semana. O curioso é que eles chegaram antes de todo o mundo e o teatro ainda estava vazio. Anita foi a primeira pessoa a entrar, em sua cadeira de roda, conduzida pelos dois filhos e pôde apreciar todos os exercícios de aquecimento feitos pelo coral. Foi escolhido o lugar mais conveniente para ela assistir à apresentação: ao fundo, em frente ao comprido corredor que dava para o palco. Naquela noite, sobreveio uma grande tempestade em Belo Horizonte, provocando engarrafamentos, colisões de veículos e alagamentos, enquanto era encenada a cantata. Anita, impassível, aguardou o final do espetáculo, cumprimentou todos os figurantes (em especial a Rute que tinha sido a personagem Hortulana), o regente Frei Joel e a mim. Com isso, quero mostrar a extrema cortesia de Anita para com todos, especialmente para comigo e Rute. Foi uma consideração enorme pelo nosso esforço e trabalho, inesquecível para nós, que guardamos em nosso coração os seus gestos carinhosos e incentivadores. Somos eternamente gratos aos três por isso. Dormimos num hotel em Belo Horizonte e na manhã seguinte seguimos para Divinópolis e um dia depois para Juiz de Fora.

Abro aqui um parêntese, para, aproveitando essa oportunidade, fazer uma reflexão sobre um traço da personalidade de Anita que pretendo ressaltar. Quando eu estava nos meus ímpetos da juventude, fui à Faculdade Dom Bosco buscar meu diploma de graduação em Letras, achando que, de posse dessa vara de condão, iria conquistar São Paulo. Os diplomas estavam na sala do eterno Vice-Diretor, Pe. Luiz Zver, que me recebeu de braços abertos e com ar paternal me convidou a sentar-me diante de sua mesa. Então, falou-me com seu vozeirão, mas com doçura, sobre duas dimensões da vida que o Homem devia sempre buscar. A primeira dimensão correspondia a um desejo de comunicação, de envolver-se com o outro e de estabelecer novas relações e vínculos humanos, — numa direção muito horizontal, mais relacionada com as coisas do mundo, — enquanto a outra dimensão era ascensional, ou seja, chamava os corações humanos para o alto (Sursum corda!), convidava o Homem para uma autêntica espiritualidade. Hoje acho que ele estava me dizendo aquelas coisas, insinuando que eu, durante os quatro anos de Faculdade, tinha desenvolvido bem — especialmente minha aptidão de relacionar-me com o outro, mas, de certa forma, esse ganho de comunicação com as pessoas me obnubilara a visão de que havia valores espirituais, os quais precisava agregar à minha formação, tendo me recomendado que eu procurasse desenvolver, além da  horizontal, a dimensão vertical, lembrando o formato de uma cruz. Como não me lembro exatamente das palavras que ele usou para dar-me aquela última lição na Faculdade Dom Bosco, vou, neste momento de reflexão amorosa, repetir palavras muito parecidas de Leonardo Boff sobre o mesmo tema, exposto no seu livro “Tempo de transcendência”. 

No dizer deste, nós “somos seres de enraizamento” (isto é, somos dotados de imanência) “e seres de abertura” (neste caso, dotados de transcendência).

A raiz nos limita porque nascemos numa determinada família, numa língua específica, com um capital limitado de inteligência, de afetividade, de amorosidade”. (Esta é nossa dimensão de imanência.) 

“Mas somos simultaneamente seres de abertura”, pois ninguém segura os nossos pensamentos, ninguém amarra as nossas emoções,  ninguém é capaz de aprisionar-nos totalmente.

“Creio”, continua Boff, “que a transcendência é talvez o desafio mais secreto e escondido do ser humano. Ele se recusa a  aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sente maior do que tudo o que o cerca.” 

“Com seu pensamento, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços. Essa capacidade é o que nós chamamos de transcendência, isto é, transcende, rompe, vai para além daquilo que é dado.”

“Numa palavra, eu diria que o ser humano é um projeto infinito.”

E conclui sua reflexão com o seguinte mote: “Quem conhece a sua alma conhece é o seu Senhor.” (Antiga tradição oriental)

Por que eu estou a falar sobre tais coisas? Porque Anita era uma mulher que transitava em ambas essas direções ou dimensões, citadas por Pe. Luiz Zver e Leonardo Boff. Alguns traços marcantes estavam presentes em sua personalidade. Excelente esposa e mãe, nas palavras do saudoso Gil Furtado, Anita teve “convivência saudável” com seus sogros, sempre “aprendendo muito, inclusive a confeccionar as até hoje famosas broinhas da Esperança¹ e em 1944, junto com a sua sogra, abriu uma pensão no Segredo, onde acolhiam jovens convocados para prestar o serviço militar, antes de eles seguirem para a Guerra na Europa. Ele ainda afirmou que, “sempre atenciosa, Anita foi grande Amiga de seus parentes e tinha por eles muita estima, tanto do lado de seus familiares, como da família de seu marido”, o que é confirmado pela autora, dizendo que Anita morou  durante dezessete anos com seus sogros em perfeita harmonia. Em largas pinceladas, Furtado citou as principais facetas do caráter de Anita: “Mulher corajosa. (…) Bondade, humildade, tranquilidade, resignação, compreensão, amizade, calma, discrição, simplicidade e paciência. De todos esses traços, o que mais impressiona em Dª Anita é a paciência aliada a uma fé inabalável e uma religiosidade convicta. Católica praticante, devota de Nossa Senhora do Carmo, ela dá o testemunho sobre tudo pelo exemplo.” 

O livro ainda registra, com muita propriedade, que “o mais encantador em Anita não era só a aparência física, mas simpatia com todas as pessoas” e “não fazia distinção entre pessoas: ricos ou pobres, todos eram bem tratados por ela.” Essas suas qualidades  emolduram sua família — modelo de simpatia, amabilidade, acolhimento e amor não só a conhecidos e parentes, mas até a estranhos. O Presidente Tancredo Neves, se entre nós estivesse, diria que Anita fora desenvolvendo um “caráter de férrea resistência, estruturado pelos mais rígidos princípios morais” ².

Assim foi a existência de tia Anita, completamente lúcida até o momento de sua morte, aos 92 anos de idade: sábia e contemplativa por um lado, profícua e produtiva, por outro. Soube  grangear amigos em todos os ambientes que frequentou, por suas ações dignas e amistosas, desinteressadas e abnegadas, conquistando a admiração geral de todos os seus conhecidos, independente da sua formação, credo ou raça, e, por todas essas razões, tornando-se merecedora desta justa homenagem que lhe presta sua filha Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga.


NOTAS DO AUTOR

¹ Furtado esclareceu a forma como ficou conhecida a famosa guloseima. Sua fama adveio, além do seu excepcional sabor, do fato de ter sido originalmente comercializada nas imediações da Caixa d'Água da Esperança, localidade em que residia o casal com seus primeiros filhos e por "onde passava a 'Maria Fumaça', o trenzinho da RMV, que ia para Sítio (hoje Antônio Carlos). Enquanto o trem parava, as Broinhas da Esperança eram vendidas aos passageiros e tripulantes." Entretanto, esqueceu-se Furtado de comentar sobre os inesquecíveis pães de queijo confeccionados por Anita, que tinham um sabor todo especial e cuja receita foi repassada a suas filhas, irmãs e cunhadas.

² Discurso do então Deputado Tancredo Neves na tribuna da Assembleia Mineira em 25 de agosto de 1947, registrando um voto de pesar pelo falecimento de Dr. Antônio de Andrade Reis, disponibilizado na íntegra por este blog no seguinte endereço eletrônico:
http://bragamusician.blogspot.com.br/2012/10/meu-discurso-de-defesa-do-patrono-da.html


BIBLIOGRAFIA

BRAGA, M.C.L.O. : Anita - Uma vida a serviço do amor, Belo Horizonte: Bellas Artes Gráfica e Editora Ltda., 2012, 210 p.
Dona Delfina, uma pérola em Águas Santas, Belo Horizonte: editora não mencionada, 2010, 110 p.

BOFF, L. : Tempo de Transcendência. Fonte: http://www.nuep.org.br/art001.php?art=2

FURTADO, G. : Dª Anna Braga Lopes / Dª Annita (Autêntica mulher brasileira, mineira e sanjoanense). Filha/irmã/mãe/avó/bisavó/tia. A todos trata com a mesma atenção, delicadeza e caridade., São João del-Rei: Tribuna Sanjoanense, edição de 16/07/2002, seção Personalidades Proeminentes de nossa História local, p. 5.

NEVES, T. A. : Voto de Pesar reproduzido in http://bragamusician.blogspot.com.br/2012/10/meu-discurso-de-defesa-do-patrono-da.html (Fonte: Anais da Assembleia Legislativa de Minas Gerais - 1947, Volume 1, p. 292-293).


Fotos:
1) Ana Braga Lopes, quando moça (BRAGA, 2012, capa)
2) Ana Braga Lopes, mulher madura (BRAGA, 2012, p. 108)
3) Ana Braga Lopes, idosa (BRAGA, 2012, p. 6)