segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O pensamento alemão, a "descoberta" da cultura germânica e novos apontamentos sobre o Lied "Rei dos Elfos", de Franz Schubert, composto sobre poema de mesmo nome do poeta Johann Wolfgang von Goethe



Por Francisco José dos Santos Braga

Palestra proferida em 29 de julho de 2012 na Academia de Letras de São João del-Rei


I. INTRODUÇÃO

Preliminarmente, gostaria de delimitar o escopo desse ensaio, cujo cerne consiste em uma análise literomusical da balada de Goethe musicada por Schubert. ¹ Para essa abordagem, foi preciso fazer uma contextualização, colocando a obra poética dentro do arcabouço do pensamento alemão vigente no final do século XVIII e início do XIX, condicionado por influências históricas e filosóficas, bem como por movimentos literários então emergentes. Foi dentro desse contexto que se deu a impressionante parceria entre dois gênios: um, Franz Schubert (1797-1828), gênio da Música, vienense, falecido aos 31 anos, sem dinheiro e dependente da ajuda de amigos, enquanto o outro, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior nome das Letras alemãs em praticamente todos os gêneros literários, conhecido como “o Sábio de Weimar”, — cidade onde residiu durante mais de 50 anos e onde veio a falecer rico, aclamado mundialmente. 


II. O PENSAMENTO ALEMÃO NO FINAL DO SÉCULO XVIII E NO SÉCULO XIX ²

A língua alemã, depois de mil anos de existência, cultivada primeiro pelos monges, seguidos pelos poetas-cavaleiros como Walter von der Vogelweide, por mestres cantores como Hans Sachs e outros, utilizada polemicamente pelo reformador Lutero como arma de combate contra Roma, tornou-se, por fim, instrumento dos sábios, firmando o princípio de que a razão é “o” apanágio do Homem. Pensadores como Kant e Hegel fizeram dela expressão de todas as sutilezas, ambiguidades ou precisões possíveis de o pensamento alcançar. De fato, nenhuma outra língua ocidental contemporânea contribuiu mais para o vocabulário filosófico e do Direito do que o idioma alemão.

Inicialmente, cabe aqui pontuar que a Alemanha, no início do século XIX, era constituída por “uma variedade colorida de pequenas e médias unidades políticas”, na feliz expressão do historiador inglês Harold James. Conforme o poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856), havia nesta Alemanha 700 homens de letras (os chamados ”Siebenhundert Weiser”), que se achavam espalhados por toda a parte, raramente se encontrando para trocarem ideias e vivendo isolados, sem contato com o exterior. Cada um fixado num condado ou principado (Jena, Berlim, Königsberg, Bonn ou Düsseldorf), jamais esses pensadores, poetas e autores teatrais constituíram uma frente de intelectuais como os franceses. Muitos deles, antes de se projetarem, viviam modestamente como preceptores dos filhos dos nobres ou dos burgueses bem sucedidos.

Desprovidos das conquistas dos oceanos e dos feitos do moderno racionalismo, obra dos ingleses e dos franceses seus vizinhos próximos, só restou aos alemães a teoria, terem que tomar de assalto o prodigioso e fantástico mundo das ideias.

Cabe assinalar, sobre os precursores Moses Mendelssohn (1729-1786), pensador criativo e eclético, e Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), crítico literário e dramaturgo, juntamente com os filósofos Leibnitz (1646-1716) e Kant (1724-1804), que foram decisivos para o surgimento do Iluminismo alemão (Aufklärung). Mendelssohn deixou obras sobre metafísica e estética, teoria política e teologia; passou à história por ter sido protagonista e modelo de tolerância religiosa na obra “Nathan der Weise”, de Lessing; por ser considerado pai do Judaísmo reformado; finalmente, por ser o avô de Felix Bartholdy e Fanny Mendelssohn.

Ao longo do século XIX, lançaram-se a ocupar esse continente intelectual. Começando pela filosofia kantiana e seu grito de guerra “Sapĕre aude” (atreve-te a saber, ousa pensar por ti mesmo, tem a coragem de servir-te da própria inteligência), engendraram assim o Idealismo alemão e a formação de uma moderna linhagem de pensadores (Fichte, Schelling e Hegel, por excelência).

Por outro lado, no mundo das Letras, Tempestade e Ímpeto (STURM UND DRANG) foi o título sonoro e retumbante da inconformidade de escritores e autores teatrais. Representava um movimento nacionalista de fervor romântico, situado entre 1767 e 1785, cujos princípios foram formulados por Heinrich Gerstenberg em suas “Briefe über Merkwürdigkeiten der Literatur” [Cartas sobre as Curiosidades da Literatura (1766)], incitando poetas e autores dramáticos à rebeldia e ao inconformismo diante da frieza do Iluminismo.

O movimento “Sturm und Drang” obteve o engajamento ativo de Goethe e Schiller, ambos estabelecidos em Weimar, os quais passaram a valorizar materiais e temas até então tidos como menos nobres e não merecedores dos olhos dos intelectuais, a saber: as histórias e cantigas populares, as mitologias germânicas e nórdicas, o estranho universo das aparições, as lendas de fantasmas, as celebrações feitas pelas bruxas durante a Walpurgisnacht, imortalizada sobretudo por Goethe no “Fausto”. Além de Goethe e Schiller, ainda pode ser citada a participação de Johann Gottfried Herder (1744-1803) no movimento, o qual enfatizou a poesia do povo em substituição ao ideal artístico da Antiguidade. A expressão “Sturm und Drang” passou a ser associada à literatura ou à música com o objetivo de assustar o público ou imbuí-lo de extremos de emoção, até à dispersão do movimento no Classicismo de Weimar e na eventual transição para o Romantismo, ao qual foram incorporados objetivos sócio-políticos. 


III. A "DESCOBERTA" DA CULTURA ALEMÃ

Goethe (1749-1832), com “Os sofrimentos do jovem Werther”, editado em 1774, consegue a façanha de tornar-se o primeiro nome das letras teutônicas a circular fora das fronteiras da Alemanha. Mas coube a Madame de Staël, em viagem pelo país em 1803-4, apresentar os intelectuais alemães (Goethe, Schiller, Wieland e Schlegel, com quem esteve) como “os homens mais instruídos e os mais meditativos da Europa”, no seu famoso ensaio “De l’Allemagne”, onde realizou verdadeira geografia cultural da Alemanha. Goethe considerou esse ensaio “como um poderoso instrumento que foi a primeira brecha na muralha de antigos preconceitos erguidos entre nós e a França.”


IV. O MITO FÁUSTICO E AS MARCAS INTERTEXTUAIS

A primeira compilação de tudo quanto se acreditava e dizia acerca de Fausto como personalidade histórica teve início em 1587, quando Johann Spiess publicou “Historia von Dr. Joahnn Fausten”. Dois anos depois, Christopher Marlowe (1563-1593), na Inglaterra, transforma Fausto em peça teatral. Dois séculos mais tarde, precisamente em 1760, Lessing cria uma nova versão dramática do Fausto, agora encarnando o heroísmo do inteleto humano, capaz por si mesmo de triunfar sobre o mal, personificado no diabo. A seguir, Fausto se tornaria um dos personagens preferidos do “Sturm und Drang” e de todo o período romântico alemão. Mas seria através de Goethe que a tragédia “Fausto” alcançaria sua máxima expressão, tendo-lhe consumido quase 60 anos para ser concluída (1775-1832); é, sem dúvida, a obra simbólica da vida desse poeta e um dos textos que adquire significado universal por materializar o mito fáustico do homem moderno, apesar de o mito se referir também a essa figura histórica, Johann Georg Faust (1480-1540), que estudou magia, medicina, astrologia e alquimia, permitindo-lhe fazer profecias. Neste caso, ganha contornos de fábula, ficção.

Esse texto reflete as várias vivências do poeta, evidenciando marcas intertextuais aí presentes:
• enquanto poeta, participando de várias escolas literárias: Iluminismo, “Sturm und Drang”, Classicismo e Romantismo;
• seus interesses científicos (botânica, mineralogia, estudo das cores, etc.);
• seus estudos filosóficos (teologia, teosofia, estudos mágicos-místicos);
• seus conhecimentos sobre mitologia antiga.
A primeira versão, composta por Goethe em 1775 e publicada em 1887, pode ser considerada um esboço, intitulado “Urfaust” (Proto-Fausto ou Fausto Zero); outro esboço foi feito em 1791, que não chegou a ser publicado, recebeu o nome de “Faust, ein Fragment”. A versão definitiva foi publicada em 1808, ano em que veio a lume a maior obra-prima de Goethe, com o nome de “Faust, eine Tragödie” (Fausto, uma Tragédia). Mas o poeta não se satisfez com a solução que dera à problemática humana de seu Fausto de 1808; assim, em 1826, iniciou a composição da segunda parte do poema, que terminou um pouco antes de morrer em março de 1832, com o nome de “Faust. Der Tragödie zweiter Teil in fünf Akten” (Fausto. Segunda parte da tragédia, em cinco atos).


V. A ETIQUETA

O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), em “Mozart: Sociologia de um Gênio”, observou existir uma tensão permanente entre a intelectualidade de classe média e os frequentadores das Cortes. Separava-os uma espécie de desprezo mútuo entre as Letras e a Etiqueta (vista como uma forma de dominação utilizada pelo rei). Talvez fosse essa a razão de os pensadores alemães – como reação à indiferença com que eram tratados - desenvolverem uma prosa muito peculiar, quase que ininteligível para quem desconhecesse o assunto, colocando a filosofia alemã, por vezes, num patamar muito próximo ao esotérico.

Com o título “Gênio Mozart, segundo Norbert Elias”, publiquei um artigo postado no Blog do Braga em 15 de dezembro de 2009 e mencionado na bibliografia. Ali fiz o seguinte comentário sobre a intolerância de Mozart quanto às rígidas regras da Etiqueta: 
“Movendo-se em círculos da aristocracia da corte, cujo gosto musical adotou e cujo padrão de comportamento deveria seguir, Mozart fugiu desse estereótipo: sendo extremamente rude em sua conduta pessoal, com um comportamento totalmente franco e direto, nunca se tornou um "homme du monde", isto é, um cavalheiro, como pretendia seu pai. Profundamente identificado com a nobreza da corte e seu gosto, Mozart sentia profundo ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha.
As cartas de seu período parisiense são um reflexo do desagrado que sentia com o tratamento altaneiro dos nobres da corte de que era vítima. Esse ressentimento cada vez crescente evoluiu para um franco enfrentamento, o que se deu com a escolha feita do libretto de Da Ponte para "As Bodas de Fígaro", ópera cujo tema o próprio Mozart escolheu e que foi considerado politicamente suspeito, segundo o ponto de vista absolutista.”
Em “A Sociedade de Côrte” (Die höfische Gesellschaft), Elias analisa a Etiqueta como uma forma de dominação utilizada pelo rei para reduzir as tensões, oriundas de uma relação de interdependência no âmbito cortesão. De acordo com Elias, o rei favorece ora um, ora outro cortesão, usando os mecanismos da Etiqueta, com a finalidade de incitar as tensões e os ciúmes e de usá-los a seu favor.

É possível admitir que a submissão de Kant, como súdito obediente à ordem real de 1º de outubro de 1794, no incidente causado por seu ensaio “Religião nos Limites da Simples Razão” (Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft), de certo modo, pautou a relação dos intelectuais alemães com as autoridades. Bem poucos deles tinham a ousadia dos franceses de afrontar as instituições.

Sobre a Etiqueta e seus rigores, cabe relembrar aqui a trilogia “Sissi”, constituída de três filmes dos anos de 1955-7. Elisabeth, carinhosamente apelidada de Sissi, natural da Baviera, enfrenta toda sorte de dificuldades para adaptar-se à estrita e protocolar etiqueta da corte dos Habsburgos, primeiro como Imperatriz da Áustria, uma vez que no dia 24 de abril de 1854, em Viena, Sissi, com dezesseis anos, desposou o seu primo Francisco José I, então com quase vinte e quatro anos. Depois, sua preferência pela Hungria chocou a Áustria e isolou cada vez mais Sissi da vida familiar e dos compromissos oficiais. A 8 de junho de 1867, juntamente com o marido, Sissi foi coroada Rainha da Hungria na sequência da assinatura do compromisso austro-húngaro. Ela colaborou efetivamente na instituição do Império Austro-Húngaro (1867-1918). 


VI. CONSTRUÇÃO DO II REICH

A primeira metade do século XIX assistiu a um embate prolongado na Alemanha entre as forças do liberalismo, que queriam uma Alemanha federal unida sob uma constituição democrática, e as forças do conservadorismo, que desejavam mantê-la como um conjunto de fracos Estados independentes e palco da competição entre Prússia e Áustria. Em 1848, durante o erguimento das barricadas – levante conhecido como Revolução dos Poetas – os liberais, entre os quais figuravam Heinrich Heine, Ferdinand Freiligrath, Richard Wagner, Max Stirner, David Strauss, Moses Hess, Karl Marx e Friedrich Engels, tiveram a sua chance e encontraram clima favorável à aberta insubordinação, embora por pouco tempo, permitindo-lhes desaforarem o poder. Exatamente em razão disso, muitos deles tiveram que levar a vida no exterior experimentando o pão salgado do exílio, na companhia dos refugiados.

Finalmente as forças do liberalismo se impuseram e Otto von Bismarck, entre 1861 e 1871, possibilitou, além da criação de um sólido estado nacional alemão unificado, a difusão do pensamento e da cultura alemã, atraindo as atenções do mundo para os filósofos, cientistas e artistas alemães, universalizando-os, juntamente com os Concertos de Brandemburgo de Bach, as sinfonias de Beethoven, os Lieder de Schubert e as óperas de Wagner, sobretudo Parsifal. 


VII. A CULTURA ALEMÃ ASSEMELHA-SE À FÊNIX

É possível identificar a cultura alemã, ao longo da história, com um fato carregado de simbolismo: a sobrevivência milagrosa da estátua do mestre cantor Hans Sachs (1494-1576), em meio aos escombros da cidade de Nüremberg,  devido ao bombardeio anglo-americano em 1945, próximo ao final da II Guerra Mundial. 


Homenagem a Hans Sachs em Nüremberg

Hans Sachs ³ já tinha sido imortalizado na ópera Die Meistersinger von Nürenberg (“Os Mestres Cantores de Nüremberg”), de Richard Wagner. Coloca-se a seguinte indagação: 67 anos após a tragédia da II Grande Guerra e 21 anos após a queda do Muro de Berlim, o que vemos? Uma Alemanha ressurgida das cinzas, novamente reunificada, tendo superado todos os problemas econômicos e sociais que tal reintegração engendrou, tendo sido incorporado o território da antiga República Democrática Alemã à República Federal da Alemanha. Para que isso fosse obtido, os cidadãos alemães tiveram que conviver com altas taxas de inflação e depressão. Agora mesmo, com a crise nos países da eurozona, os títulos alemães são considerados pelas agências de risco como praticamente livres de risco, detendo o “rating” AAA de classificação de risco, enquanto os da Grécia, Espanha, Portugal e Itália atingem os piores patamares imagináveis. 


VIII. ERLKÖNIG (REI DOS ELFOS), DE FRANZ SCHUBERT

Com esse título, publiquei um artigo postado no Blog do Braga em 8 de março de 2012 e mencionado na bibliografia. Para maior conveniência do leitor, reproduzo, a seguir, não só o texto de Goethe, como também a tradução não-rimada, quase literal, que ofereci para a célebre balada “Rei dos Elfos”, ambos constantes do referido artigo da minha autoria:

Erlkönig
Johann Wolfgang von Goethe

Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind.
Er hat den Knaben wohl in dem Arm,
Er faßt ihn sicher, er hält ihn warm.

"Mein Sohn, was birgst du so bang dein Gesicht?"
"Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht?
Den Erlenkönig mit Kron' und Schweif?"
"Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif."

"Du liebes Kind, komm, geh mit mir!
Gar schöne Spiele spiel ich mit dir;
Manch bunte Blumen sind an dem Strand,
Meine Mutter hat manch gülden Gewand."

"Mein Vater, mein Vater, und hörest du nicht,
Was Erlenkönig mir leise verspricht!?"
"Sei ruhig, bleibe ruhig, mein Kind;
In dürren Blättern säuselt der Wind."

"Willst, feiner Knabe, du mit mir gehn?
Meine Töchter sollen dich warten schön;
Meine Töchter führen den nächtlichen Reihn,
Und wiegen und tanzen und singen dich ein."

"Mein Vater, mein Vater, und siehst du nicht dort
Erlkönigs Töchter am düstern Ort?"
"Mein Sohn, mein Sohn, ich seh es genau:
Es scheinen die alten Weiden so grau."

"Ich liebe dich, mich reizt deine schöne Gestalt;
Und bist du nicht willig, so brauch ich Gewalt."
"Mein Vater, mein Vater, jetzt faßt er mich an!
Erlkönig hat mir ein Leids getan!"

Dem Vater grausets, er reitet geschwind,
Er hält in Armen das ächzende Kind,
Erreicht den Hof mit Mühe und Not —
In seinen Armen das Kind war tot.

(Fonte: REINERS, Ludwig: Der ewige Brunnen: ein Volksbuch deutscher Dichtung, uma antologia de poemas coletados e publicados pelo compilador [1896-1957], Verlag C.H. Beck, Munique, 1955, 946 p.)

Eis agora a minha tradução para "Erlkönig":

Rei dos Elfos
Johann Wolfgang von Goethe

Quem cavalga tão tarde pela noite e ao vento?
É o pai com o seu filho;
Ele segura a criança bem nos braços,
Segura-o com firmeza, mantém-no quente.

"Meu filho, por que escondes tão receoso teu rosto?"
"Pai, não vês o Rei dos Elfos?
O Rei dos Elfos com coroa e cauda?"
"Meu filho, é um fio de névoa."

"Tu, querida criança, vem comigo!
Maravilhosos jogos eu jogarei contigo,
Na praia há muitas flores coloridas,
A minha mãe tem várias túnicas douradas."

"Meu pai, meu pai, não ouves
O que o Rei dos Elfos baixinho me promete?"
"Calma! Sossega, meu filho,
O vento é que murmura nas folhas secas."

"Queres, belo garoto, vir comigo?
As minhas filhas te farão a corte;
Minhas filhas conduzem a dança noturna,
E embalarão, dançarão e cantarão para adormeceres."

"Meu pai, meu pai, não vês ali
As filhas do Rei dos Elfos no local sombrio?"
"Meu filho, meu filho, eu vejo perfeitamente:
São os velhos salgueiros de cor cinzenta."

"Eu amo-te; encanta-me a tua linda figura;
E se não vieres por bem, eu usarei da força."
"Meu pai, meu pai, ele agarra-me agora!
O Rei dos Elfos machucou-me!"

O pai estremece, ele cavalga rapidamente,
Ele segura nos braços a criança gemente,
Com muito custo à fazenda ele chega.
Nos seus braços a criança jazia morta. 

Conforme é sabido, Goethe baseou sua balada em “A Filha do Rei dos Elfos”, uma obra dinamarquesa traduzida para o alemão por Herder. Alerto aqui para o fato de que o material da balada “Erlkönig”, proveniente de um tesouro de contos e provérbios nórdicos, proíbe que se aproprie do caráter pavoroso-demoníaco do acontecimento, através de tentativas de explicações racionais de seu resultado; assim, até o pai, tão razoável, fracassou em suas explicações dos fatos, rendendo-se finalmente à evidência de que também ele se achava tomado de horror diante do desfecho impressionante do que considerara simples alucinação do seu filho.

A percepção sempre desempenhou um papel importante nas obras da época romântica. Nessa escola, era comum o uso de realidades distorcidas, colocando em dúvida a ideia da existência de apenas uma realidade.

Um ótimo exemplo vem de Goethe, cuja obra alavancou o movimento “Sturm und Drang” e, mais tarde, o Romantismo. Sua balada “Erlkönig” apresenta um menino que acredita estar obsedado por um espírito da floresta, o Rei dos Elfos, enquanto ele e seu pai cavalgam pela floresta à noite. Seu pai, não vendo o Rei dos Elfos, recusa-se a ouvir os apelos da criança; pelo contrário, dá explicações lógicas para tudo o que o menino está a relatar. Ao final do poema, o menino está morto, mas fica a dúvida: O Rei dos Elfos lhe tirou a vida? Ou a criança estava simplesmente febril, sofrendo alucinação? O poema não dá resposta, mas, em vez disso, leva o leitor a indagar: Quem afinal deve ser levado a sério, o pai ou o filho? Ou ambos os pontos de vista são igualmente reais?

Esse tipo de questionamento vai completamente contra o Iluminismo, no qual se buscava uma verdade única. Goethe, em vez disso, sugere, com a sua balada “Erlkönig”, que várias verdades podem existir, cada uma delas igualmente válida.

Independente de o resultado ter sido obtido através do efeito de febre, drogas ou doença mental, o fato é que ficou muito claro para os românticos que havia mais modos de ver as coisas do que o habitual. Ao levarem em conta que podia haver mais de uma forma de perceber o mundo e as pessoas aí, essa descoberta lhes deu muito maior liberdade de pensamento do que se estivessem querendo mostrar apenas uma interpretação “verdadeira”. De fato, foi este questionamento sobre o papel da mente humana que pavimentou a estrada para a psicologia moderna e suas investigações da percepção humana.

Após essas elucubrações, convém explicar qual é, a meu ver, a dificuldade técnica de se cantar o Lied de Schubert sobre essa letra de Goethe. Quatro personagens – o narrador, o pai, o filho e o Rei dos Elfos – todos, enfim, são cantados por um(a) cantor(a) somente, mas a peça foi pensada para quatro cantores diferentes. Schubert colocou cada personagem em uma extensão vocal completamente diferente, tendo cada voz suas próprias nuances rítmicas. Além disso, os cantores mais capazes tentam usar uma diferente cor vocal para cada um desses personagens.

Reproduzo aqui novamente o que registrei no meu artigo mencionado acima:
“Assim, o Narrador permanece na extensão média e está no modo menor. O Pai fica na extensão grave e canta tanto em modo menor quanto maior. O Filho fica na região aguda, em modo menor, representando o pavor da criança. A linha vocal do Rei dos Elfos, no modo maior, ondula para cima e para baixo de acordo com o acompanhamento arpejado, resultando daí um contraste gritante. As linhas do Rei dos Elfos — a própria representação da morte — são tipicamente cantadas pianissimo, retratando uma persuasividade vil, lembrando às vezes as insinuações doces de um pedófilo. Ou seja, a dificuldade está em o(a) cantor(a) conseguir adotar quatro vozes distintas para esses quatro personagens envolvidos. Um quinto personagem pode ser imaginado, o cavalo, permanentemente sugerido nas rápidas tresquiálteras ou tercinas tocadas pelo pianista ao longo da peça, imitando tropel de cascos.
O Lied “Erlkönig” de Schubert é considerado um desafio de execução para qualquer cantor, devido à caracterização vocal exigida do(da) cantor(a) solista, bem como ao seu difícil acompanhamento, envolvendo o toque de oitavas e acordes repetidos rapidamente para criar o drama e urgência poética.” 
Cabe aqui analisar mais detidamente as possíveis razões que levaram Goethe a praticamente ignorar seu colaborador Schubert, tido atualmente como genial e perfeito. Sabe-se que, em 1816, Franz Schubert e seu círculo de amigos decidiram publicar uma coleção de todas as canções que Schubert até ali tinha composto. Joseph Spaun, que Schubert conhecia desde seus tempos estudantis, tentou a sua sorte (e a de Schubert) escrevendo uma carta dirigida a Goethe, o então inquestionável Mestre da Língua Alemã, na qual falava do critério utilizado para a seleção das canções alemãs, que consistiriam de oito volumes, todos com arranjo musical de Schubert, informando que os dois primeiros conteriam apenas poemas da autoria do autor da balada Erlkönig.

Parece que Goethe não se importou com essa iniciativa de Schubert, pois Schubert não fazia parte das “afinidades eletivas de Goethe”, termo utilizado pelo filólogo Bernhard Rudolf Abeken (1780-1866) em seu tratado de 1810 e, mais tarde, analisado em “Ensaios Reunidos: Escritos sobre Goethe”, de Walter Benjamin.

Portanto, importa ainda indagar: Por acaso existiria uma razão musical para “O Sábio de Weimar” não se importar com os arranjos musicais de seus poemas por Schubert? A resposta a essa pergunta é dada por determinada carta de Goethe, manifestando contentamento com um compositor que musicava seus poemas, e, ao mesmo tempo, fazendo-lhe as seguintes referências elogiosas: “Ele satisfaz o caráter de um tal poema, em estrofes idênticas, o todo retornando esplendidamente de forma que se faz sentir de novo em cada parte individual, ao passo que outros (compositores), através da assim chamada composição  ‘não-estrófica’, destroem a impressão do todo pela ênfase nos elementos particulares.” ⁴ Quem aqui é elogiado por Goethe não é Schubert, mas o compositor Carl Friedrich Zelter e seus Lieder simples (hoje quase completamente esquecidos).  Não admira que Goethe ⁵, assim pensando, não tenha mesmo conseguido captar a complexidade rítmica e a harmonia sutil de um Schubert.

Em teoria da música sobre forma musical, costuma-se dizer que o Lied é throughcomposed (ingl.) ou durchkomponiert (ger.), sempre que ele possui diferente música para cada estrofe. Muitos exemplos desta forma não-repetitiva podem ser encontrados nos "Lieder" de Schubert. O Lied “Rei dos Elfos” (Erlkönig) é um desses exemplos, no qual a composição musical propõe um diferente arranjo para cada nova estrofe e, sempre que a peça apresenta um novo personagem (o pai, o filho, o Rei dos Elfos ou o narrador), retrata o respectivo registro vocal e tonalidade específicos exigidos pelo personagem em questão.

Apesar de o compositor de Viena ter enviado as duas coleções em 1816 e 1825 a Weimar em busca de reconhecimento do poeta, este deve ter considerado Schubert um compositor de Lied não-repetitivo (que não utiliza a forma estrófica) e, por essa razão, elas foram levianamente colocadas de lado.

Essa balada numinosa, plena de magia natural, “Erlkönig”, de Goethe, apareceu em 1781. A letra da balada de Goethe foi usada por muitos compositores em seus “Lieder”, sendo a versão de Franz Schubert (1815/1821) a mais conhecida: seu Opus 1 (D. 328).

Vou-me permitir uma ligeira digressão para considerar surpreendente a inventividade de Schubert especialmente no Lied, — gênero de música vocal por excelência, mas que Schubert concebeu também como de música instrumental, dada a riqueza da sua escrita duplamente descritiva e polifônica para o piano, — com suas descobertas de novas sonoridades, inesperadas soluções harmônicas, modulações avançadas, dotando o piano com um poder de descrição absolutamente inovador e com uma expressividade até então desconhecida.

A harmonia de Schubert, nos seus Lieder, reflete alterações emocionais, vivenciadas quer pelo texto quer pelo autor (passando de menor para maior, deslocando-se magicamente para a terça respectiva, resolvendo sutilmente uma 7ª diminuta, modulando uma estrofe final para acelerar o clímax), sendo utilizadas também as figurações de acompanhamento para ilustrar imagens poéticas (água em movimento, brilho de estrelas, sino de igreja). Com tais recursos, Schubert desbravou novos caminhos para a música expressar um texto, desde a descrição do amanhecer até arroubos de angústia.

Ao descobrir a lírica narrativa de Wilhelm Müller, poeta “Biedermeier”, Schubert pôde consumar o desenvolvimento do Lied por meio do Liederzyklus (ciclo de canções ou de Lieder). Ao musicar a produção poética de Müller, apareceram duas obras-primas de Schubert, na forma de ciclos de canções, consideradas praticamente sem precedentes, insuperáveis. Elas identificam a natureza com o sofrimento humano.

O primeiro ciclo de Lieder sobre poemas de Wilhelm Müller, chamado Die schöne Müllerin ou “A bela Moleira” (Op. 25 D. 795), evoca caminhadas, o fluir das águas e o desabrochar das flores. Schubert musicou os poemas entre maio e setembro de 1823, aos 26 anos de idade, tendo publicado esse ciclo de Lieder em 1824. A história desse ciclo pode ser sintetizada da seguinte forma: Há vinte canções no ciclo (cerca de metade na simples forma estrófica) que passam do alegre otimismo ao desespero e à tragédia. No começo do ciclo, um moleiro andarilho passeia gostosamente pela área rural. Atinge um regato, que dá num moinho. Ele se apaixona pela bonita filha do moleiro. Ela está fora do seu alcance por ele ser simplesmente um viajante. Mesmo assim, ele tenta impressioná-la, mas a resposta dela parece ambígua. Esse jovem é logo suplantado nas afeições dela por um caçador vestido de verde, a cor de uma fita que ele ofertou à jovem. Em sua angústia, o andarilho é tomado por uma obsessão pela cor verde, e em seguida por uma extravagante fantasia de morte na qual brotam flores do túmulo dele para expressar o seu amor eterno. No final, o jovem se desespera e se afoga no regato. A última canção do ciclo “A bela Moleira” é uma balada cantada às margens do regato.
                                                                                                            
Entre os dois ciclos de canções com letra de Wilhelm Müller, isto é, em 1825-6, apareceu o Liederzyklus vom Fräulein vom See (Ciclo de Canções da Dama do Lago), de Schubert, no qual a sua célebre Ave Maria é chamada de Ellens dritter Gesang (Terceira Canção de Ellen), com base em letra alemã do tradutor Philip Adam Storck para o poema narrativo de Walter Scott, intitulado “The Lady of the Lake”.

Publiquei um artigo intitulado “Crônica da Solenidade cívico-religiosa do Registro civil tardio de Francisca de Paula de Jesus (Nhá Chica)”, no dia 10 de maio de 2011, no Blog de São João del-Rei, com os seguintes comentários na Nota do Autor nº 15 a respeito da Ave Maria, de Schubert:
“A “Ave Maria” de Schubert tem uma história que merece ser conhecida. Franz Schubert (1797-1829) compôs essa canção em 1825 como parte do Op. 52, sob o título ‘Sete Canções extraídas de “A Dama do Lago” de Walter Scott’ (Sieben Gesänge aus Walter Scotts Fräulein vom See), um “ciclo de canções de A Dama do Lago” (Liederzyklus vom Fräulein vom See). A canção conhecida por “Ave Maria” é chamada “Ellens dritter Gesang” (Terceira Canção de Ellen). Não só a música, mas também a letra das 7 canções na versão original de Walter Scott (1771-1832), bem como a sua tradução por Storck para a língua alemã, foram ambas publicadas em 1826 como Op. 52 de Schubert. Este foi, financeiramente, um dos mais bem sucedidos projetos do compositor vienense: o editor pagou-lhe 20 libras esterlinas, um belo cachê naquela época.
Também merece atenção a história do longo poema narrativo, A Dama do Lago, do romancista escocês, que deu origem ao ciclo de 7 canções de Schubert. Publicado em 1810, A Dama do Lago descreve uma disputa ficcional no século XVI entre vários clãs do Planalto Escocês, uns leais ao Rei Jaime V da Escócia (1512-1542), e outros não, como o clã dos Douglas. A obra narra como a bela e jovem heroína, Ellen Douglas, é obrigada a esconder-se, em companhia do pai, James Douglas, numa caverna, fugindo do rei vingativo. Aí ela canta uma canção — “Hino à Virgem” —, uma prece à Virgem Maria por socorro. Essa canção — a conhecida Ave Maria — ocorre no Canto 3 da obra, estrofe 29.
Philip Adam Storck (1780-1822) traduziu-a livremente para a língua alemã em Essen, em 1819. Essa tradução então se tornou base para o referido ciclo de canções de Schubert, composto em 1825 e publicado como Op. 52 em 1826. A Ave Maria de Schubert é uma das mais populares canções no mundo, embora seja frequentemente cantada com uma letra diferente da original, por exemplo, em latim, ou executada em diferentes versões instrumentais com nenhuma letra.”
O segundo ciclo de Lieder sobre poemas de Wilhelm Müller, intitulado Winterreise ou “Viagem de Inverno” (totalizando 24 Lieder, aparecido no outono de 1827, um ano antes da morte do compositor), distingue-se por uma qualidade mais intensamente romântica, universal, profundamente trágica. Constitui  uma série de reflexões feitas por um viajante de inverno sobre temas sombrios e tristes, realçadas pela utilização de tonalidades menores em 16 delas. A própria Natureza retratada nos poemas reflete o estado de espírito amargurado do poeta, uma vez que são frequentes as descrições de paisagens sombrias e geladas.

Cabe ainda mencionar neste espaço o último ciclo de Lieder de Schubert, chamado Schwanengesang ou “Canto do Cisne”, título de uma coletânea póstuma de Lieder, sobre poemas de três poetas, sete de Ludwig Rellstab (1799-1860), seis de Heinrich Heine (1797-1856) e um de Johann Gabriel Seidl (1804-1875). Esse último Lied do ciclo, da autoria de Seidl, leva o título de Taubenpost ou “Pombo-correio” e é considerado o último que Schubert compôs em vida. Nele, o cantor declara que possui um pombo-correio, cujo nome é Sehnsucht (Saudade). É perceptível que esse poema tem pouco a ver com os outros poemas do ciclo, o que gerou dúvida se o editor Haslinger o apensou ao ciclo com o objetivo de arredondar todos os últimos Lieder restantes de Schubert, comprometendo assim a ideia de unidade do ciclo e criando problemas de continuidade. Outros sugerem que a intenção de Schubert era na realidade publicar os conjuntos separadamente, como, de fato, ele, em 2 de outubro de 1828, tentou fazê-lo oferecendo os direitos autorais sobre o conjunto de poemas de Heine a um editor de Leipzig, conhecido como Probst. Não obstante, a maioria das pessoas consideram a coletânea publicada por Haslinger como a versão oficial e é como é executada normalmente.

Como explicar tudo isso, especialmente se se considerar que se desconhece ter havido, por parte do maior compositor de “Lieder”, um estudo musical formal e aprofundado, como o que tiveram outros compositores? O que no fundo se sabe é que Schubert fora, na sua infância e adolescência, um dos “Meninos Cantores de Viena” e, mais tarde, discípulo predileto de Antonio Salieri (1750-1825), professor de música das filhas do Conde Esterházy, bem como eterno candidato a mestre de capela, cargo com que sempre sonhou e que nunca chegou a ocupar. Suas cartas aos amigos evidenciam que procurou conhecer bem a sua Áustria, cuja beleza descreveu com grande sentimento; além disso, admirava a Hungria, cujo folclore, em versão livre, se pode apreciar nos ritmos, nas harmonias e nas melodias de muitas obras instrumentais tardias. Aos 31 anos morreu vitimado por uma febre tifóide e, só então, sua música foi “redescoberta”, para tal tendo colaborado o emocionado Schumann, ao “desenterrar” a Sinfonia em dó maior D. 944, “A Grande”, do mestre vienense. A fama de Schubert limitou-se por muito tempo à de um autor de “Lieder”, uma vez que o corpo de sua imensa produção não havia sequer sido publicado, e muitas obras sequer executadas até o final do século XIX.

Após essa curta digressão, é importante assinalar que sobrevivem muitos outros arranjos musicais para a célebre balada “Rei dos Elfos”, a começar por membros do círculo de Goethe, tendo citado quase todos no meu artigo supracitado, inclusive a versão de Beethoven. Destacaram-se ali a importante e dificílima transcrição do Lied de Schubert para piano solo, da autoria de Franz Liszt, a orquestração do arranjo pianístico de Schubert feita por Hector Berlioz em 1860 como acompanhamento para o solo da mezzo soprano e, mais recentemente, uma grande toccata orquestral composta por Hans Werner Henze em 1996, sobre um libretto que Jean Cocteau havia escrito para ele em 1962.

Se eu tivesse que selecionar um vídeo do YouTube para ilustrar uma apresentação sobre a balada “Rei dos Elfos” de Schubert, escolheria a gravação antológica do barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, comumente abreviado para DFD (1925-2012), com acompanhamento do pianista inglês Gerald Moore (1899-1987), porque o que ali se constata é que esse duo teve a exata compreensão do Lied como “forma poético-musical tipicamente germânica”, que Schubert consolidou no primeiro quarto do século XIX. MARTINELLI (2012) prestou a seguinte homenagem a DFD, por ocasião de sua morte em 18 de maio de 2012: 
“Com o fim da Segunda Guerra Mundial, tanto os aliados como os alemães tinham uma difícil tarefa: restabelecer uma nova imagem para o país. Nesse processo, a arte e os artistas desempenharam importante papel, com especial destaque para os músicos clássicos. Entre eles, Fischer-Dieskau alcançou alta excelência e serviu de modelo, pois, apesar de ter integrado as tropas nazistas, sua biografia deixava claro que não fora por livre-arbítrio.
Logo o artista começou a firmar parcerias musicais com importantes músicos de outras nações. Simbolicamente, esta arte da reconciliação que Fischer-Dieskau inspirava teve seu ponto culminante na estreia do Réquiem de Guerra, do inglês Benjamin Britten, em 1962.
Porém, foi com o Lied que Fischer-Dieskau viria a se tornar uma espécie de embaixador da música alemã. A partir da inspirada parceria com o pianista inglês Gerald Moore, o cantor aproveitou uma oportunidade única com a ascensão da indústria fonográfica clássica, convencendo o mundo do apelo universal dessa forma de expressão poético-musical tipicamente germânica. Desse imenso repertório, Fischer-Dieskau concentrou suas forças nas centenas de canções de Schubert, gravando-as na íntegra, e em alguns ciclos, que registrou várias vezes. Seus discos sempre obtiveram expressivos resultados de venda.
Apesar de ter sua imagem fortemente vinculada ao Lied, o barítono teve também uma importante carreira nos palcos de ópera. Entre os diversos papéis que encarnou, foram especialmente aclamados seu Hans Sachs de Os mestres cantores de Nüremberg, de Wagner, e o
papel-título de Wozzeck, a ópera moderna de Alban Berg.
Aliás, vários foram os compositores modernos que escreveram especialmente para a voz de Fischer-Dieskau. Além de Britten, o cantor estreou também obras de Hans Werner Henze, Gottfried von Einem, Witold Lutosławski e Aribert Reimann, cujo Lear foi a última gravação em ópera feita pelo cantor.”
(grifos meus)

Conforme fiz no meu artigo supracitado, reitero aqui minha esperança de ter deixado evidente para o leitor a presença da misteriosa balada "Erlkönig" de Goethe no imaginário do mundo ocidental, desde o seu aparecimento em 1781, — e da sua versão musical mais conhecida, o "Lied" de Franz Schubert de 1815/1821, — até hoje, através das diversas gerações.
E termino este ensaio com um texto retirado de GIBBS (1995), em minha tradução:
"O poema de Goethe seduziu centenas de compositores a fazerem arranjos, dentre eles os destacados compositores de 'Lied', tais como Reichardt, Zelter e Loewe. O arranjo superior de Schubert é um de um conjunto das composições mais executadas, reelaboradas e gravadas jamais compostas, a peça é a que fez o nome de Schubert na década de 1820 e é a mesma que continua a possuir uma atração incomum tanto para os intérpretes quanto para os ouvintes." 

IX. BIBLIOGRAFIA

BIANCOLINO, T. : A evocação de sonoridades instrumentais na escrita para piano no ciclo Winterreise de Franz Schubert [dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências para a obtenção do título de Mestre em Música pelo Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Unesp], São Paulo, 2008, p. 4-6 da Introdução, disponível na Internet.

BRAGA, F.J.S. : “Gênio Mozart, segundo Norbert Elias”, postado no Blog do Braga em 15 de dezembro de 2009, disponível na Internet no seguinte endereço:
http://www.bragamusician.blogspot.com.br/2009/12/genio-mozart-por-norbert-elias.html

“Erlkönig (Rei dos Elfos), de Franz Schubert”, postado no Blog do Braga em 8 de março de 2012, disponível na Internet no seguinte endereço:
http://www.bragamusician.blogspot.com.br/2012/03/erlkonig-rei-dos-elfos-por-franz.html

 — “Crônica da Solenidade cívico-religiosa do Registro civil tardio de Francisca de Paula de Jesus (Nhá Chica)”, postado no Blog de São João del-Rei em 10 de maio de 2011, disponível na Internet no seguinte endereço:
http://www.saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html

GIBBS, Christopher H.: "Komm, geh' mit mir: Schubert' s uncanny Erlkönig", extraído do seu livro 19th-Century Music e publicado no JSTOR (Journal Store), University of California Press, vol. 19, nº 2 (outono, 1995), p. 115-135.

MARTINELLI, L. : Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), São Paulo: Revista Concerto nº 185, julho de 2012, p. 26-7.

RIGOTTO, G.; SILVA, V.H.A. e SCHILLING, V. : “Tempestade e Ímpeto” – História-Síntese da Cultura Alemã (Caderno de História, nº 16 – Memorial do Rio Grande do Sul e Instituto Goethe), s/d, disponível na Internet no seguinte endereço: www.memorial.rs.gov.br/cadernos/alemanha.pdf


X. NOTAS DO AUTOR

¹ Muitos dos elementos utilizados neste trabalho constituem basicamente reprodução da palestra com o título “O Lied ‘Rei dos Elfos, de Franz Schubert’ sobre poema do ilustre poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe”, que o autor proferiu na Academia de Letras de São João del-Rei, em 29 de julho de 2012, a convite de sua Diretoria.

² Vários subsídios para esta matéria, especialmente os referentes ao pensamento alemão e à cultura e história germânicas, foram extraídos do trabalho, citado na bibliografia, de autoria de RIGOTTO, SILVA & SCHILLING.

³ Hans Sachs foi um intérprete do Meistersang (arte dos mestres cantores). Após ter peregrinado pelo sul da Alemanha, regressou à sua terra natal Nüremberg, tendo se dedicado a uma atividade literária muito produtiva. Redigiu mais de 4.000 Meisterlieder (cânticos de mestre), cerca de 1.500 Schwänke (estórias cômicas) e mais ou menos 200 obras dramáticas. Sua produtividade surpreeende, em especial porque, paralelamente à sua atividade artística, ele se manteve com a profissão de sapateiro ao longo de toda a sua vida.

“Er trifft den Charakter eines solchen, in gleichen Strophen wiederkehrenden Ganzen trefflich, so dass es in jedem einzelnen Theile wieder gefühlt wird, da wo andere, durch ein sogenanntes Durchcomponieren, den Eindruck des Ganzen durch vordringende Einzelheiten zerstören.” (Lamento que o comentário sobre Peter Franz Schubert da autoria de Joachim Landkammer não deu maiores referências sobre a procedência desta carta de Goethe, donde ele extraiu esse trecho, no lançamento da The Naxos Deutsche Schubert-Lied-Edition 13 – Goethe Lieder Vol. 2) 

BIANCOLINO (2008) registrou em sua dissertação de mestrado:
 “(…) Entretanto, hoje, quando nos referimos ao Lied romântico, nos referimos ao gênero de música vocal cristalizado nas primeiras décadas do século XIX por compositores de língua alemã, e que tem por principal característica a interação entre a poesia, expressa na linha vocal, e a parte do piano, que deixa de funcionar como mero acompanhador da voz:
A essência da canção, especialmente do Lied romântico, consiste na igualdade de música e texto, uma síntese realizada por uma nova forma de arte advinda de dois diferentes meios. Aqueles que falham em compreender o significado do poema falham, do mesmo modo, em compreender o significado da música originada dele. (STEIN; SPILLMAN, 1996, p. 20).
(…)

O conteúdo do poema deveria, segundo o entendimento padrão do compositor de canções do século XVIII, ser apresentado pela linha vocal sem que o instrumento interferisse nesse processo. Em grande parte, tal fenômeno deveu-se à concepção iluminista da música que, na verdade, corroborava a concepção vigente desde a Antigüidade clássica, segundo a qual os sons só tinham razão de ser quando em função da poesia. Em outras palavras, o pensamento era o de que a música servia apenas como um suporte ao texto. A poesia, nesse sentido, era tida como a mais nobre das artes. A predileção de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) pela canção estrófica revela o gosto vigente entre os intelectuais do século XVIII, e é, no mínimo, irônica, considerando que muitos de seus poemas foram utilizados na composição de obras de base de todo o gênero Lied: 
Para ele [Goethe], a canção ideal era basicamente silábica e em forma estrófica, para se ajustar à dos poemas. A melodia devia guiar-se pelos versos, sem aspirar à independência, e não cabia ao acompanhamento chamar a atenção ou sequer ilustrar as palavras, senão de maneira mais geral. [...] Goethe teria considerado excessivamente musicais as canções compostas sobre poemas seus, a começar por Schubert e Loewe. (RUSHTON, 1991, p. 146).”