segunda-feira, 25 de julho de 2016

MARIA EUGÊNIA CELSO, ESQUECIDA INTELECTUAL SÃO-JOANENSE (1886-1963)



Por Maria Eugênia Celso


I.  INTRODUÇÃO, por Francisco José dos Santos Braga


Nesta data de 25 de julho, vêm-nos à mente ilustres nomes da Igreja Católica por sua fé inabalável (São Tiago Maior e São Cristóvão), os quais relembramos com enorme devoção. Além disso, sintam-se homenageados por este Blog igualmente todos os escritores por ser hoje o Dia Nacional do Escritor, comemorado desde 1960 em nosso País. Para homenagear os escritores em geral,  este Blog seleciona nesta data uma ilustre escritora, natural de São João del-Rei e, na pessoa de Maria Eugênia Celso, presta sua reverência ao importante trabalho do profissional das Letras, profissão que, infelizmente, nem sempre tem sua relevância reconhecida. 

Objetiva o presente artigo oportunizar à eminente intelectual são-joanense Maria Eugênia Celso ¹,  filha do conde Afonso Celso, falar diretamente ao leitor do Blog do Braga, através da sua palestra de abertura no evento cultural "Tardes do Instituto", promovido pelo IHGB, que teve enorme repercussão na sociedade do Rio de Janeiro. Tal palestra foi proferida em 30 de maio de 1928, intitulada "O Espírito e o Heroísmo da Mulher Brasileira" ².

Para relembrar o ambiente naquele dia da ilustre palestra, este Blog reproduz também, à guisa de Histórico, trecho da ata que trata desse evento cultural, precedendo a palestra de Maria Eugênia Celso (Carneiro de Mendonça).

Em notas explicativas (de minha lavra) serão tecidos também alguns comentários, visando a uma breve exposição da vida e obra da conferencista, bem como à contextualização do assunto da palestra.

Será respeitada a grafia da época.


II.  HISTÓRICO
 

TARDES DO INSTITUTO

Com extraordinaria concorrencia de senhoras e cavalheiros, iniciou o INSTITUTO HISTORICO, em Maio de 1928, uma serie de conferencias femininas, cujo programma tem o titulo geral de Tardes do Instituto.

Foi tal a affluencia de gente, que muitas pessoas se retiraram por falta de logar. Coube à laureada poetisa e jornalista, d. Maria Eugenia Celso, realizar a primeira palestra sôbre o seguinte thema: O espirito e o heroismo da mulher brasileira.

Abrindo a sessão, o presidente perpétuo do INSTITUTO, conde de Affonso Celso, disse que o mesmo INSTITUTO, convidando a intellectualidade feminina a collaborar nos seus trabalhos, teve dous intuitos: primeiro, render justo preito de aprêço a essa intellectualidade, que sempre se distinguiu, mas apresenta agora, como nunca, expoentes notaveis; depois, demonstrar que a velha corporação, constantemente operosa e vivaz, sabe conciliar o amor da tradição e do passado com o culto do modernismo e da novidade, em tudo quanto seja criterioso e possa contribuir para o lustre da Patria. Corporação essencialmente conservadora, é tambem animadamente progressista: promove, acolhe, applaude, estimula quaesquer iniciativas nobres e patrioticas, como o é, sem dúvida, essa que começava a realizar-se. Não lhe cabia lembrar os meritos da conferencista, a quem agradeceu, bem como às suas companheiras o haverem acceito o convite do INSTITUTO. Agradeceu tambem ao auditorio, no qual destacou o exmo. sr. embaixador dos Estados Unidos – o auditório, cujo comparecimento avultado, illustre, brilhante, conferiu à primeira das Tardes do Instituto o esplendor da alvorada, formosissima e genuina alvorada brasileira. Pediu em seguida à conferencista que usasse da palavra.
 

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III. CONFERÊNCIA INTITULADA "O ESPIRITO E O HEROISMO DA MULHER BRASILEIRA"
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(Conferencia realizada pela
senhora Maria Eugenia Celso Carneiro de Mendonça,
no Instituto Historico a 30 de Maio de 1928)

Senhor presidente, minhas senhoras, meus senhores.

As minhas primeiras palavras não podem deixar de ser de agradecimento e de emoção.

Mandaria a praxe que fôssem antes de modestia, talvez, pois a cópia da modestia faz parte de toda oração que se queira reger pelas velhas normas, as normas classicas, as que naturalmente dominam numa instituição tão sabidamente conservadora como o INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO.

A modestia , porém, – e não se carece de grande agudeza de observação para verifica-lo, – soffre na actualidade um eclipse total.

O individualismo dos tempos relegou-a ao perecido ról das cousas irremediavelmente fóra da moda. Não seria de bom gôsto, portanto, arranca-la a esta penumbra de ostracismo para repetir-vos o que à saciedade sabeis: que outra mais auctorizada voz feminina, que não a minha, devia ter sido a primeira a se fazer ouvir neste recincto.

Tornam-se, justamente pela consciencia disto, mais reconhecidamente desvanecidos os meus agradecimentos à directoria do INSTITUTO HISTORICO, por me haver proporcionado o gaudio desta honra, convidando-me para iniciar a serie de conferências femininas das Tardes do Instituto. Si algo póde justificar essa escolha, reside no facto de terem sido passados, por assim dizer, à sombra do INSTITUTO HISTORICO, a minha adolescencia e mocidade.

Por mais longe que remonte no passado, sempre o conheci, sempre nelle ouvi fallar, sempre o contei entre as cousas familiares a meu espirito e costumeiras a meu ambiente. É-me quasi íntima a sua atmosphera. Confesso mesmo que a irreverencia de meus quinze annos, aos quaes se afigurava o discurso uma das mais calamitosas manifestações de brasilidade, só enxergando no INSTITUTO o lado oratorio das sessões magnas, durante certo tempo o considerava a última palavra do enfadonho, como enfadonhos serão sempre para todos os quinze annos da terra a Geographia, a Historia, o estudo e a tradição. Toda mocidade é instinctivamente iconoclasta e a minha não escapou à generalidade desta regra. Chegada, no entanto, épocha mais reflectida, o estouvamento desta opinião se foi a pouco e pouco transmudando em respeito, acatamento, veneração.

Comprehendi-lhe a utilidade da alta missão, aquilatei-lhe o alcance, admirei-lhe a serena estabilidade.

E quando, instada por Max Fleiuss, seu tão activo e competente secretário, me resolvi a acceitar a incumbencia desta primeira palestra, não foi sem ter feito um secreto appêllo ao que possa haver em mim dêsse heroismo da mulher brasileira, de que tenho por tarefa entreter-vos.

Perguntareis porque? É muito simples. Noventa e um annos de existencia conferem ao INSTITUTO HISTORICO o prestígio de um verdadeiro patriarchado entre as associações nacionaes, e, por mais dadas que sejam as mulheres às intemperanças de lingua, fallar na casa de um patriarcha sempre ha de ser motivo para torna-las, um segundo ao menos, caladas e hesitantes. Todas as hesitações cessaram, entretanto, deante da significação moral dêsse convite.

Demonstra elle claramente quanto – sans en avoir l'air – desde 1838, fizeram caminho às mulheres no Brasil, constituindo não só uma homenagem, tanto mais meritoria quanto mais espontanea, ao espirito da mulher brasileira, como principalmente indicando radical mudança na mentalidade dos homens em relação às capacidades dêste mesmo espirito.

Aos venerandos fundadores do INSTITUTO, sem excepção por certo, se antolharia verdadeiramente irrisoria a hypothese de mulheres lhe virem um dia occupar a tribuna, e si um gaiato, por pilheria, a houvesse outróra aventado, teriam sorrido superiormente os mais polidos, este pairante sorriso de condescendencia, conscio da sua supremacia, ante os desgarros caprichosos de uma creança, um sorriso que, aliás, ainda não desertou completamente dos labios masculinos. Hoje, esta circunstância já não espanta nem a homens e nem a mulheres; entrou na ordem natural das cousas, normalizou-se. Esta normalização tão simples na apparencia, mas tão reveladora de profundas gradativas evoluções, se nos depara como um signal dos tempos. Não é só a mulher que sente ampliado o seu papel na sociedade. Ao homem tambem, a pouco e pouco liberto de preconceitos e modificadas as perspectivas do seu ponto de vista, a cooperação da mulher, em todos os ramos da sua actividade, já se apresenta como absolutamente imprescindivel.

O gyneceu já não póde mais ser para ella o carcere privado, em que não raro se lhe estiolavam e finavam, por falta de cultivo, as faculdades.

Além dos seus deveres basicos de espôsa, dona de casa e de mãe, outros deveres a solicitam e a reclamam. Seu espirito, todavia, ou antes as qualidades essenciaes que a characterizam bem nossa entre as mulheres do mundo, permanecem as mesmas.

O espirito da brasileira, mesmo nas suas mais arrojadas manifestações, conserva esse cunho de meiguice, de doçura, de maternidade, que a torna mãe antes de tudo, acima de tudo. O proprio amor que tem à patria nada mais é do que uma irradiação de seu amor materno, amando nella tão sòmente a terra de seus filhos.

Considerada na sua maioria e talvez devido à educação exclusivamente caseira durante longos seculos recebida, a brasileira não oferece, à primeira vista, o patriotismo exaltado da européa. Deixam-na fria, em geral, as questões de puro civismo. Para aquece-la, para fazer aflorar à tona a alma profunda e arrancar-lhe ao sentimento a centelha patriotica, é preciso toca-la no coração. Assim inflammada, vai aos extremos, é capaz dos mais sublimes rasgos de heroismo.

E que é heroismo, afinal, sinão exceder ao proprio personagem, ser maior do que si mesmo?...

A palavra, no entanto, só nos parece dar toda a medida de sua significação quando aplicada a feitos bellicos, lances em que a vida se arrisca em guerreiros episodios, aventuras de capa e espada. Esta accepção, circunscrevendo ao heroismo um campo de acção exclusivamente militar, restringe naturalmente um pouco o número das nossas authenticas heroinas.

O general Carlos de Campos nos seus "Perfis biographicos das Heroinas do Brasil" aponcta, ainda assim, vinte e nove destas super-mulheres que, no seu parecer, merecem a honra de ser admiradas e veneradas pela História, embora algumas dessas patrícias não tenham ainda recebido dos pósteros os laureis a que fizeram jús.

Entre essas heroinas avulta pela aura de romance que a cerca, como pela popularidade de que gosa, a figura internacional de Annita Garibaldi.

Por um dêstes mysteriosos designios do fado, quiz o acaso que para encontrar aquella que devia insuflar, pelo destemor sem limites de sua dedicação, a pertinacia de ânimo que o tornou o unificador glorioso da Italia, tivesse Garibaldi de atravessar os mares e viesse fundear, em 1837, deante da villa de Laguna, como commandante-chefe da esquadrilha dos federalistas.

De uma feita, assestando desoccupadamente para a terra o oculo de alcance, avistou entre os verdores de um jardim esbelta silhueta de moça...

Era Annita, Annita que, noiva sem amor, do tenente do Exército imperialista, João Gonçalves Padilha, seguia, fascinada, as evoluções da flotilha revolucionária, da qual sabia ser chefe um joven aventureiro, temerario até à demencia, em quem obscuramente presentia o seu destino.

Mandar arriar um escaler, desembarcar e pôr-se immediata e loucamente à procura daquella que lhe surgira como visão de graça primaveril, captada sem saber pela cumplicidade do oculo indiscreto, foi, para aquelle ser de acção e de vontade, obra de momentos. Chegando em terra, todavia, não atinou com a casa onde a surprehendera e desesperançado, desilludido, ia regressar a bordo, quando um conhecido o convida a entrar um momento em sua casa.

Era a sorte que, emboscada nesse convite, inopinadamente o aguardava.

Narrou Garibaldi nas suas Memórias o theatral imprevisto dêste encontro: "Entrei e a primeira cousa que vi foi a moça que havia contemplado pelo oculo... Ficámos mudos, um deante do outro, olhando-nos como si não fôsse a vez primeira e, como eu fallava pouco o portuguez, saudei-a com estas palavras: Tu devi esser mia."

A ousadia da phrase foi como um cunho de posse na alma subjugada da donzella.

Alguns dias depois apresentava-se de nôvo Garibaldi ao pae de Annita, Bento Ribeiro da Silva, pedindo-lhe, ou antes, exigindo-lhe a mão da filha.

A recusa foi categorica. Ao sensato lagunense, todo imbuido de principios conservadores e educado na velha rotina de só se poderem casar as raparigas com o marido designado pelo pae, a turbulenta perspectiva daquelle genro, cheio de imprevistos ameaçadores, deve ter aterrado.

Annita, porém, já dispuzera de si. Seu amor, mais forte que todas as razões, mais imperioso que a própria razão, arrastava-a irresistivelmente.

Fugindo à casa paterna, a bordo de um dos navios tomados aos imperialistas, Annita esqueceu nos braços de Garibaldi o mundo que até então fôra o della.

Iniciava-se a sua vida de heroina. Nesse mesmo navio recebeu o baptismo de fogo, e Garibaldi, deslumbrado, comprehendeu que não era só uma adoravel amante que enamoradamente acolhera a seu bordo, era mais um marinheiro na sua tripulação, mais um soldado, bello, galhardo, intrepido, que se alistava nas suas fileiras, fascinando aos outros pela valentia sem par do seu exemplo.

Em repetidos lances de bravura, de sangue-frio e de intuição estrategica, Annita bateu-se ao lado daquelle que só em 1842, em Montevidéo, na egreja de São Francisco de Assis, se tornou legalmente seu espôso. O casamento, porém, não representava para aquelles dous entes tão estreitamente unidos sinão méra formalidade.

As campanhas accidentadas dessa mallograda guerra dos Farrapos, de que Annita fôra, tão ao pé da lettra, a generala, os perigos afrontados junctos, as privações soffridas em commum, o sangue derramado com egual desprendimento pela mesma causa, haviam creado entre elles laços de indestructivel solidez.

Não eram só espôsos, eram dous companheiros de lucta, dessa lucta audaz e exhaustiva em que Annita havia sido ao mesmo tempo afoita combatente e enfermeira devotada à cabeceira dos feridos.

Tu devi esser mia
, dissera-lhe Garibaldi, arrebatando-a com o despotismo dos que nasceram marcados para o commando, através às peripecias de sua vertiginosa epopéa. E delle foi ella unicamente, integralmente até à morte, accompanhando-o na guerra e vivendo, na paz, feliz à sombra de sua glória.

Em 1849, na Italia, Annita retomou as armas. "Na hora da peleja –  escrevia ella heroicamente ao marido, retida em casa pelo nascimento de um filho – não penses em mim, Giuseppe, nem nos nossos filhos, mas tão sòmente na pátria."

É por esta phrase, em que Annita se guinda à altura das antigas mulheres lacedemonias, que ella, por assim dizer, poz o remate supremo à sua corôa de heroina.

O destino piedoso lhe reservava, no entanto, a mais ditosa das mortes: morreu nos braços do homem amado, quando com elle fugia à perseguição do inimigo temporariamente victorioso. Durara dez annos seu maravilhoso romance.

Ravenna elevou-lhe uma estatua. Bello Horizonte ostenta em praça pública seu busto glorioso, e, em Porto Alegre, expressivo monumento de marmore immortaliza-lhe a peregrina lembrança em terra gaúcha.

Pelo garbo da sua formosura, pelo desassombro nunca desmentido de sua coragem, como pela infatigavel abnegação de seu amor, Annita Garibaldi se nos afigura o expoente maximo das heroinas brasileiras. Tanto na galhardia da sua personalidade, como no romanesco de sua vida, tudo corresponde triumphalmente nella à idéa que nós fazemos do heroismo.

Profundamente brasileira pela ternura incomparavel da sua alma, Annita Garibaldi foi mundial pela grandeza da orbita em que se moveu. Heroina dos dous Mundos, tal é o nome com que se immortalizou nos fastos da nossa história, como nas mais famosas páginas da História italiana, essa heroica filha do Brasil.

Si a escolhi como figura central de toda esta pleiade de brasileiras illustres, de que venho de vos dar em rapida resenha a história e a vida, é porque reputo Annita Garibaldi, no sentido combativo e romantico da palavra, a mais heroina das nossas heroinas, pois foi a um tempo uma heroina de coragem e uma heroina de amor.

Antes della, porém, bem antes della, nos primordios da nossa nacionalidade, já o heroismo feminino floria e desabrochara em fructos de lidima pujança na nossa terra. Os nomes de Paraguassú e de Bartira, essas filhas da selva brasileira, que fôram como a cellula-mater da nossa raça pelo seu consórcio com Diogo Alvares e João Ramalho, o conquistador colonizante, não podem ser esquecidos. Em 1630, na quadra agitada do domínio hollandez, Clara Camarão, india tambem, índia formosa, com a sua côr de cobre luzente, o magnetico negrume de seus olhos, Clara Camarão, que fez do selvicola Poti o chefe prestigioso que foi d. Philippe Antonio Camarão, surge indomavel, batendo-se ao lado do espôso, desde Goianna, onde foi derrotado um dos melhores chefes hollandezes, o valente Artichofsky, até a primeira batalha dos Guararapes. Investindo Mauricio de Nassau contra Porto-Calvo, Clara Camarão, tomada de um delirio de patriotismo, empunha as armas, e, pondo-se à testa de um esquadrão de mulheres, marcha desassombradamennte contra o invasor, secundando com admiravel pericia o espôso tambem engajado na lucta.

"A mulher de d. Felippe Camarão, conhecida pelo nome de d. Clara, – diz della com espanto o historiador Abreu Lima –  combateu com uma bravura que o seu sexo fazia incrível".

Tanto exfôrço e extraordinaria energia ficaram concretizados na soberba alcunha com que a cognominaram – Camilla brasileira.

Celebraram-na os guerreiros e cantaram-na os poetas:

Vibrando a longa espada,
Ao lado marcha do brasileiro espôso
A nobre espôsa amada
Nos campos dos troyannos.
Camilla furiosa,
Voando sobre a grimpa da serra,
Mais triumphos a morte não prepara.
Assoberbam o batavo nefando.
O quente sangue espuma.
Qual bela foge, qual brasileo fére.
Quem evita o Mavorte,
Na espada feminil encontra a morte.

Digna emula das nobres pernambucanas que em Tejucupapo victoriosamente repelliram o assalto dos Hollandezes, Clara Camarão com d. Maria de Sousa, a mãe espartana que preferiu a salvação da patria à vida de seus filhos, symbolizam a propria alma heroica da guerra hollandeza. Frei R. de Jesús, num periodo de delicioso archaismo, do seu "Castrioto Lusitano", assim se refere à temeraria Carijó: "Montada em um cavallo, d. Clara Camarão foi tão clara nesta gentileza que deixou escurecida a memória das Zenobias e Semiramis com que tanto se illustrou a Antiguidade". Não foi só Clara Camarão, todavia, que o elemento bugre forneceu como prova irrefutavel do heroismo indigena. Dous seculos mais tarde, em 1820, uma india tambem, a neta de um cacique dos Caiapós, baptizada por Damiana da Cunha, a missionaria, em penosissimas peregrinações através dos sertões de Goiaz, tendo por únicas armas o poder de sua palavra e a persuasão de seu exemplo, passou a vida a conquistar almas ao Christo e subditos ao Brasil. Pioneira do progresso e do bem, si não foi feita de lances atrevidos a sua existencia, nem por isso deixa de ter o seu pacifico heroismo a belleza sem par de um apostolado.

Quasi dous seculos antes, uma paulista Rosa de Siqueira, acompanhando o marido numa viagem à Bahia a bordo da nau portugueza Nossa Senhora do Carmo, tivera occasião de comprovar a sua valentia num encontro com piratas argelinos, com os quaes a Nossa Senhora do Carmo teve de travar renhido combate. Rosa de Siqueira, ao brado de Viva a fé de Christo! excitava os marujos ao combate, combatendo ella mesma com a intrepidez e a resistencia physica de um homem, ateando fogo à peça, orphã do artilheiro morto pela explosão de uma granada, e a todos enchendo de pasmo e de admiração pela sua inegualavel fortaleza de alma.

Quasi, por esta épocha, no correr do anno de 1700, uma menina de 18 annos, Maria Ursula de Abreu Lencastre, impellida pelas vehemencias da indole varonil e ardendo no desejo de assignalar-se nos campos de batalha, fugia da casa dos paes, embarcando para Lisbôa, onde assentou praça sob o nome de Balthazar Cardoso. Passando-se depois para a India, ahi celebrizou-se o pseudo Balthazar em façanhas de subido valor, vindo a merecer de el-rei d. João V, quando já aposentada da vida combativa, e ancorada no porto seguro do casamento, como premio aos quatorze annos de serviço militar, a mercê do paço de Panquim, pelo tempo de seis annos, de um xerafim por dia, pago na alfandega de Gôa e da liberdade de testar. Ignoro si representaria grande generosidade da parte do soberano a dadiva dêste xerafim diario que Joaquim Norberto nos assegura ter enchido a heroina de contentamento e de gratidão; em todo caso mostra da parte do govêrno a alta cotação em que era tida a guerreira.

É ainda o general Carlos Augusto de Campos quem observa que, em quasi todas, sinão em todas as nossas grandes revoluções e na mór parte dos nossos movimentos nativistas ou patrioticos de toda ordem, surge sempre um bello e nobre vulto de mulher a animar, encorajar, dignificar a acção dos homens, de que se tornam emulas ou inspiradoras, umas pelo coração e o espirito, outras pelo exemplo e pela acção, todas, porém, sem medir exforços e sacrificios.

Assim foram Benta Pereira, a famosa Campista, em 1779, na antiga capitania do Rio de Janeiro; d. Anna Lins, dicta d. Anna Triste, em 1817, nas Alagôas; d. Anna Araripe, no Ceará, em 1824, e d. Josepha Carneiro de Mendonça, na villa do Araxá, por occasião da insurreição de 1842, na provincia de Minas.

D. Josepha Carneiro de Mendonça, sexagenária, prêsa incommunicavel durante dous mezes, separada dos seus, com tal dignidade e heroismo fez face à multiplicidade de reveses que sôbre ella se abateu, que o conego José Antonio Marinho ³,  que lhe relata as proezas, declara dever a História immortalizar-lhe a memória.

No drama da Inconfidencia dous perfis de mulher se destacam num incomparavel relevo de poesia. Uma, é esta formosa Maria Dorothéa de Seixas, cuja doce effigie Thomás Antonio Gonzaga immortalizou na Marilia de Dirceu; outra, é aquela altaneira e fascinado Barbara Eliodora, a musa inspirada e inspiradora, à qual Alvarenga Peixoto, do fundo da masmorra sinistra da ilha das Cobras, enviava estes versos, estuantes de paixão e de saudade: 

Barbara bella, 
Do Norte estrêlla,
Que o meu destino 
Sabes guiar,
De ti ausente, 
Triste somente,
As horas passo
A suspirar.
Por entre as penhas
De incultas brenhas,
Cança-me a vista
De te buscar.
Eu bem queria, 
A noite e o dia,
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa,
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quiz privar...
Tu entre os braços
Ternos abraços,
Da filha amada, 
Podes gosar.
Priva-me a estrêlla
De ti e della;
Busca dous modos
De me matar.

"Todos os encantos da intelligencia e da belleza, da graça e da virtude se encontravam nessa mulher extraordinaria – relata um contemporâneo. Descendente da nobre estirpe de Amador Bueno, espôsa adorada, mãe idolatra dessa linda Maria Iphigenia, a quem seu orgulho materno appellidara de Princeza do Brasil, senhora de brilhante talento e rara formosura, considerada rica e feliz, Barbara Eliodora tudo sacrificou pela causa da Patria independente. A sua propria intelligencia, essa intelligencia, de que se ufanava como de seu mais esplendido galardão, não resistiu à sentença que lhe bania para sempre o marido e declarava infame a prole. Enlouqueceu. Mas teve uma loucura tranquilla – conta-nos Alfredo Valladão – sorria e cantava em voz baixa, recitando com tristeza a poesia que o marido lhe enviara... E assim morreu.

Si a Conjuração Mineira teve em Tiradentes o seu martyr supremo e em Barbara Eliodora a sua gloriosa heroina, um seculo mais tarde a Independencia encontrou em Maria Quiteria de Jesus a sua Joanna d'Arc e em soror Joanna Angelica a sua heroica victima.

Maria Quiteria, filha de paes portuguezes, do Reconcavo da Bahia, vivia com os seus em fazenda no sitio do rio do Peixe. Influida por um emissario que angariava voluntarios para o exército, convenceu-se das vantagens da Independencia e partiu. Franklin Doria, barão de Loreto, descreve-a assim no seu livro Enlevos. "Nos tempos em que a Bahia pugnava pela independencia, excitada por admiravel patriotismo, deixava o nosso feminino guerreiro a rudeza e obscuridade da sua vida, desleixadamente vivida pelas varzeas do sertão e, com a espingarda ao hombro, com a farda conchegada aos seios, com o fogo do entusiasmo no coração, lá se fôra alistar nas fileiras da brigada direita. Seria a Clorinda de Tasso – indagava enthusiasmado o auctor das Heroinas do Brasil – esta Clorinda de cabellos de ouro desnovelados ao vento que campeava na estacada, mais animosa e mais firme do que a morena Maria Quiteria em face dos soldados do general Madeira, batendo-se como um bravo no campo de Pirajá...

Soror Joanna Angelica, a primeira heroina da nossa Independencia, atirando-se em defesa da clausura de seu convento, invadido pela soldadesca lusitana e, num gesto sublime de altruismo, interpondo seu corpo à passagem da horda sacrilega, pagou com a palma do martyrio o seu sacrificio. "Para trás, bandidos! Respeitae a casa de Deus. Antes de conseguirdes os vossos infames designios, passareis por sôbre o meu cadáver!"

Passaram. Eis como a poetiza bahiana Amelia Rodrigues, lapidarmente descreve a morte gloriosa da Abbadessa da Lapa:

A soldadesca infrene, allucinada,
Sedenta de oiro, horrivel de furor,
Como um tufão de odio e de rancor
Corre pela cidade consternada.

E rouba e mata e vai desenfreada
Contra as portas da casa do Senhor,
Onde viceja da pureza a flôr
Pelos anjos do céu custodiada.

Vôa a madeira aos golpes da alavanca
Da turba vil... mas à segunda porta
Uma figura surge, dôce e branca...

É soror Joanna que a passagem corta!...
"Mate-se a freira!..." E logo a entrada franca
Faz-se por cima da abbadessa morta!...

A Bahia orgulha-se com justiça dessas suas duas grandes filhas, em quem sobejamente se patentearam todo o denodo e o patriotismo de que é capaz a mulher brasileira.

À guerra do Paraguai, onde tanto do nosso lado como no do inimigo tal dispendio de coragem suscitou da parte dos homens, não podia deixar de pagar o seu tributo o heroismo feminino.


Chica Biriba, Florisbella, Maria Curupaiti, lutando com soldados e como soldados morrendo, attestam mais uma vez, heroicamente, que a rudeza da vida militar não é tão infensa quanto se crê à decantada fragilidade feminina, quando a move e sustenta a idéa da defesa da patria.


Uma figura, porém, sobreleva em grandeza o impeto batalhador destas destemidas soldadas. Uma figura de dedicação, uma figura de humanidade e de consolação, a Florence Nightingale das enfermeiras do Brasil, d. Anna Nery, a Mãe dos Brasileiros. Enquanto matavam aquellas, d. Anna Nery curava e consolava, lenindo com a bondade dos seus cuidados os soffrimentos daquelles que tombaram pelo Brasil em Corrientes, em Humaitá e em Assumpção. D. Anna Nery, patrona da nossa Cruz Vermelha, seguindo aos cincoenta annos de edade para servir, com risco da vida, nos hospitaes de sangue, é mais um exemplo magnifico dêsse espirito de maternidade, objectivado fecundante em pról da collectividade, de que a Brasileira póde sem favor ser considerada o prototypo. E não só de maternidade. Um traço curioso, commum a todas essas heroinas, é o fervor da sua dedicação conjugal. Fôram todas ellas, com menos paixão talvez do que Annita Garibaldi, mas com egual fidelidade, espôsas exemplares. À honestidade dir-se-ia a qualidade dominante da Brasileira, e não só no tempo de Maria Barbara, a paraense heróica que "à mancha conjugal prefere a morte", sendo por isto cruelmente assassinada pelo apaixonado vingativo, mas nos nossos tão fallados e calumniados dias.


Uma prova disto está na phrase de um secretário de embaixada extrangeira, que, regressando à Europa, depois de assás longa estada entre nós, respondia com espirito à pergunta interessada de um companheiro prestes a embarcar para cá: "Les brésiliennes? Ravissantes, mon cher, mais desespérément honnêtes!" Desesperadoramente honestas... Talvez fallasse pela bocca estouvada dêste moço um despeitado. A verdade é que não nos podia ter rendido mais completa homenagem.


Sôbre o tumulto das matronas romanas gravavam os cidadãos este epitaphio: "Domum servavit, lanam fecit", guardou o lar e fiou lã. Era o maior elogio que a morta podia merecer.


Si guardar o lar e fiar lã não podem mais entrar em verdade no projecto do epitaphio de mulher nenhuma, desde que a lã já lhe chega fiada e a rua constitue o appendice mais frequentado da habitação moderna, à brasileira, na sua quasi totalidade, póde ser applicado o espirito por assim dizer desta inscripção. Si não anda ao alcance de todas a vida aventurosa de uma Annita Garibaldi, a audacia politica de uma Barbara Eliodora, o fertil mysticismo de uma Joanna de Gusmão, a nenhuma é vedado o meritorio e obscuro heroismo do dever quotidiano. Na generalização bem comprehendida do cumprimento dêsse dever se acha o segrêdo da grandeza da patria. Ser uma heroina de guerra e de sangue, nem a todos os temperamentos femininos appeteceria, mas ser uma heroina de amor, resume, sem contesto possivel, a aspiração de todas nós. O heroismo do coração é o que mais seductoramente ha de sempre fallar a toda imaginação de mulher. Dêsse heroismo possue o Brail um dos mais tocantes especimes na pessôa de Moema, a indiana enamorada de Diogo Alvares, que ao ve-lo partir com Paraguassú, atira-se ao mar seguindo a náu que o leva, enquanto fôrças tem para nadar...


Accompanhar a nado um navio, que absurdo! objectará resinguenta a razão.


Sim: mais c'est bien plus beau lorsque c'est inutile! e Sancta Rita Durão, no poema célebre em que nos pinta a scena pungente, põe nos labios dessa heroina estrophes da mais saborosa psychologia. Moema, luctando com as ondas, num derradeiro grito de paixão, lança desesperado adeus ao ingrato viajor:


"Barbara, a bella diz, tigre e não homem!
Porém, o tigre por cruel que brame
Acha fôrças, amor, que enfim o domem.
Só a ti não domou por mais que te ame!
Furias, raios, coriscos que o ar consomem,
Como não consumis aquelle infame?
Mas pagar tanto amor com tedio e asco...
Ah! que corisco és tu... raio... penhasco!...


Tão dura ingratidão menos sentira
E esse fado cruel doce me fôra
Si a meu despeito triumphar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora;
Por serva, por escrava te seguira,
Si não temera de chamar senhora
A vil Paraguassú que, sem que o creia,
Sôbre ser-me inferior, é nescia e feia."


Esta nota tão realista e tão humana do desatino desses insultos atirados, em última instancia, à rival victoriosa, é que emprega o picante de uma nota de actualidade às rimas, um tanto envelhecidas do velho Durão. Moema, heroina do abandono e da saudade, já na voragem da morte voluntaria, ainda teve tempo de constatar que Paraguassú, nescia e feia, lhe era em tudo inferior. É preciso convir que só uma mulher, realmente, em situação tão extrema, disto se lembraria!...


Mas, acima do heroismo do amor, acima do heroismo do lucto, minhas senhoras e meus senhores, ainda ha um heroismo superior, o heroismo da renúncia e do sacrifício, depurado de egoismo, tão puro e tão alto, que só as grandes almas o sabem practicar.


Como representante maxima dêsse heroismo no Brasil, sem que eu ainda vos tenha fallado nella, sentis como que a irradiação da sua luminosa individualidade. Sentis que falta a esta galeria de heroinas brasileiras a sua mais bella, a sua maior figura. Não ha brasileiro que hoje em dia não lhe faça justiça. À medida que o tempo vai arrefecendo até a isenta de ânimo da imparcialidade, o partidarismo das facções políticas, o seu vulto insigne cresce em magestade e em expressão, Isabel, a Redemptora... Para libertar uma raça, não hesitou a princeza, surda ao aviso prophetico de Cotegipe, em sacrificar o interesse de seus filhos e a posse do seu throno. Si alguns lhe querem negar a grandiosa responsabilidade dêste acto, desde que o captiveiro já se achava virtualmente extincto pela lei de 1885 e pela lei do ventre livre; si outros lhe increpam como fatal êrro politico o 13 de Maio, a verdade é que para passar com cima dos interesses financeiros encapellados em protestos desvairados de revolta, e para exquecer, assim tão absurdamente o proprio interesse, só a sublime loucura de uma mulher. Isabel, a Redemptora, foi esta mulher. O seu maior padrão de glória no entanto, o motivo pelo qual lhe cabe mais do que a todas as outras o primeiro logar, o logar maximo na história do heroismo feminino brasileiro, não foi a abolição que lho outorgou. Foi a constancia, a tenacidade, a abnegação do seu inquebrantavel amor ao Brasil. Amar a sua terra na opulência, é cousa que a ninguem póde muito custar. Ama-la, entretanto, renegada, banida, menosprezada, exquecida é mais do que heroismo, é sanctidade. Foi dêsse quilate o patriotismo da princeza Isabel que o exílio não fez sinão intensificar e acendrar. Diante dêsse vulto imponente de Brasileira em que se concentram todas as virtudes, todas as nobrezas, todos os heroismos femininos da nossa terra, o peito se nos entumece do mais raro, do mais sagrado dos orgulhos: o orgulho de nos sabermos, brasileira como esta grande brasileira. Esse orgulho, não era preciso que vos viesse recordar a licção que, do passado, suggestivamente nos provém, para que o sentissemos em nós, arraigado e vivaz, tumido de promissoras possibilidades. É a quintessencia do patriotismo. Ao invés do homem, o patriotismo na mulher, todo feito de pequenas minúcias enternecidas, não abrange synthese tão vasta de sentimentos e de ideaes. É um conjuncto de dados pormenores. Para que, no entanto, sejam as Brasileiras de hoje dignas do heroismo destas egregias antepassadas, de que acabo de vos recordar os nomes gloriosos, basta que saibam sentir e tornem seus filhos capazes de a sentir tambem, o fremito de amor ao solo natal que, deante do quadro illuminado da paizagem de todo o dia, tocada do ouro de um sol bem brasileiro, arrancou a uma poetiza este grito em que lhe ia todo o coração:


                                                       Então,

Sinto ao furtivo arroubo dêste instante,
O quanto te amo, meu Brasil gigante,
No quadro familiar do meu torrão!



IV.  NOTAS EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga

 

 
¹   Nascida em São João del-Rei, ainda criança, Maria Eugênia Celso mudou-se com seus pais para a cidade imperial de Petrópolis, onde se radicaram. Formada no Colégio Nossa Senhora do Sion, do Rio de Janeiro, dominava o francês tão bem quanto a língua materna. Dotada de grande sensibilidade poética, literata e possuidora de fina cultura, mas atualmente esquecida do grande público, Maria Eugênia Celso marcou os meios literários com sua presença de poetisa, jornalista, conferencista, contista, dramaturga e crítica, no primeiro meado do século passado. Como jornalista, fundou a primeira coluna social do Brasil, "Coquetel", no "Jornal do Brazil", e teve várias de suas poesias estampadas nas revistas "O Galo", "Fon-fon" e "Revista da Semana", onde assinava com o pseudônimo de BF ("Baby-Flirt"). Também se tornou apresentadora de programas em importantes rádios cariocas, a saber, "Nacional", "Sociedade" e "Jornal do Brazil". Seu programa radiofônico "Quartos de Hora Literária" tinha grande audiência. Ao mesmo tempo, era funcionária de carreira do Ministério da Educação e Cultura. Participou ativamente do Movimento Feminista, em favor da emancipação política e social da mulher brasileira, ombreando, nesta atividade, com Bertha Lutz, a grande feminista brasileira. Foi membro da FBPF-Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e, pela sua luta pela causa da adoção do voto feminino no Brasil, foi nomeada pelo governo brasileiro como a representante do Brasil no II Congresso Internacional Feminista, realizado em 1931, no Rio de Janeiro. Um ano depois, o País adotava o voto para as mulheres. Além disso, chefiou a Delegação Brasileira à Conferência de Paris e participou de Delegações junto à UNESCO e à Comissão de Intercâmbio com o Uruguai. Grande patriota, foi batalhadora incansável do desenvolvimento do seu povo: no terreno assistencial, trabalhou ativamente na Cruz Vermelha Brasileira, na Pró-Matre, na Cruzada Nacional contra a Tuberculose, na Beneficiência dos Lázaros e na Liga dos Cegos do Brasil. Teve reconhecido seu valor pela França, que a condecorou com a Legião de Honra. É patrona da cadeira nº 30 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul e da cadeira nº 12 da Academia de Letras de São João del-Rei, ocupada atualmente pela Acadêmica Ana Maria de Oliveira Cintra.
Escreveu uma peça teatral, tendo publicado em 1917 na Imprensa Nacional "A Eterna Presença: Nocturno em um Acto de André Dumas", fato que contribuiu para que, por algum tempo, se atribuíssem seus versos a uma autoria masculina. Ainda na década de 1920, Maria Eugênia escreveu as seguintes peças teatrais: Amores de Abat-jour, O Segredo das Asas e Por Causa D'Ella, reunidas em livro em 1931 sob o título de "Ruflos de Asas".
Além disso, deixou os seguintes livros: Em Pleno Sonho (poesia, 1920), De Relance... (crônicas, 1924), Vicentinho (1924), Fantasias (1925), Fantasias e Matutadas (poesia humorística, 1925), Desdobramento (contos, 1926), Jeunesse (poesia em francês, 1936), Alma Vária (poesia, 1937), O Diário de Ana Lúcia (romance, 1941), O Solar Perdido (poesia, 1945), Espólio da Baroneza de Bonfim e Coleção Galeno Martins de Almeida (n/d), Poesias Completas (1955) e uma biografia, em 1946 ("Síntese Biográfica da Princesa Isabel").

Quanto à data de nascimento de Maria Eugênia Celso, [CINTRA, 1994, p. 220-1] informa que foi a 19 de abril de 1886. Idem,  registra o nome de sua mãe, a são-joanense D. Eugênia de Castro Celso, filha do médico Dr. Carlos Batista de Castro e de D. Maria José Batista de Castro, Barões de Itaípe e sogros do Embaixador Gastão da Cunha.

²   Além da senhora Maria Eugênia Celso Carneiro de Mendonça, as outras conferencistas participantes do evento "Tardes do Instituto" eram Maria Junqueira Schmidt, Maroquinha Jacobina Rabello e Anna Amelia de Queiróz Carneiro de Mendonça.

³  O cônego José Antônio Marinho foi um grande colaborador do talvez maior benfeitor são-joanense, Baptista Caetano de Almeida, natural de Camanducaia.  Marinho estreou em 8 de dezembro de 1835, em São João del-Rei, como redator do periódico Astro de Minas, cargo que conservou durante os últimos três anos de duração da folha são-joanense. Destacou-se em S. João del-Rei, no magistério como lente de Filosofia, chegando a diretor de colégio, na vereança e no jornalismo. Foi eleito vereador são-joanense e deputado provincial mineiro. Chegou a pároco e monsenhor.
Alex Lombello AMARAL refere-se ao cônego José Antônio Marinho como  grande e ilustre revolucionário, "mais conhecido pela sua obra História do Movimento Político de 1842, publicada em 1844, que trata da chamada Revolução Liberal de Minas Gerais e São Paulo; Marinho não participou ativamente só desse momento da história do Brasil. Aliás, nessa obra também não tratou apenas desse movimento armado, mas da história do Brasil, que vivenciou desde a independência."



V.  REFERÊNCIA  BIBLIOGRÁFICA



Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tardes do Instituto. Conferencias realizadas pelas senhoras Maria Eugenia Celso Carneiro de Mendonça, Maria Junqueira Schmidt, Maroquinha Jacobina Rabello e Anna Amélia de Queiróz Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro, s/d. (Acervo: Biblioteca Riograndense)
Disponível na Internet no site http://lhs.unb.br/bertha/?p=434
(Acesso em 22/07/2016)

CINTRA, Sebastião de Oliveira: Galeria das Personalidades Notáveis de S. João del-Rei, São João del-Rei: 1994, 270 p., publicado com o apoio da FAPEC-Fundação de Apoio à Pesquisa, Educação e Cultura.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A BARBA NÃO FAZ O FILÓSOFO (Em latim, “barba non facit philosophum”), por Aulo Gélio


Por Francisco José dos Santos Braga


I.  INTRODUÇÃO

Sócrates e seu pálio, figurado na tela "A Morte de Sócrates" de David (1787)

O título acima traz a expressão, tornada proverbial entre os Romanos, e foi utilizada, por ser o tema do texto apresentado aqui


Mais comum entre nós, porém, é dizer que "o hábito não faz o monge", equivalente ao dito que aparece no título deste artigo. Neste caso, a palavra "hábito" tem o sentido de "roupagem de frade ou freira", conforme apresentado pelo Aurélio. Esse dito popular, equivalente ao utilizado no título, constata o valor exagerado dado por nós às aparências (a barba, o hábito) e sugere que é preciso ir além dos traços exteriores e buscar o âmago e a essência do ser.
Para demonstrar a correção desta última afirmativa, sirvo-me de um texto do miscelanista Aulo Gélio (c. 123-c. 169 d.C.), extraído de Noites Áticas ("Noctes Atticae"), uma compilação em 20 livros, de caráter enciclopédico, que fornece um retrato original do século II da era cristã. Digno de destaque é o uso do humor e da ironia nas suas descrições de celebridades controvertidas, como as de Favorino e de Herodes Ático.  Gélio foi um escritor muito lido na Idade Média, tendo sido um dos favoritos de Erasmo de Rotterdam, que extraiu anedotas e citações das encantadoras "Noites Áticas", recomendando-as aos professores como uma útil fonte de conhecimento. Erasmo também classificou Gélio entre "os grandes autores" latinos cujo estilo era digno de imitação, juntamente com Cícero, Tito Lívio, Quintiliano, Apuleio e Plínio. ¹
Comparativamente pouco é conhecido sobre a vida do autor de "Noites Áticas" e nossas fontes de informação são quase inteiramente seus próprios escritos, pois há diferentes versões sobre a data e o local de seu nascimento e de sua morte, bem como a época e a duração de sua permanência em Atenas. ² Alguns pensaram que era de origem africana, mas isso foi questionado por outros. O certo é que, se não era romano, já estava em Roma na época em que assumiu a toga virilis, na idade entre 15 e 17 anos, onde estudou gramática e retórica. Estava em Atenas depois de 143 d.C., pois lá, nessa ocasião, ele se refere a Herodes Ático, que foi cônsul naquele ano. Ainda em Roma, entre seus instrutores em gramática, estava o celebrado cartaginês Sulpício Apolinário e, em retórica, Antônio Juliano, Tito Castrício e, talvez, Marco Cornélio Frontão. Ao completar seus estudos em Roma, seguiu para Atenas para sua instrução em filosofia, possivelmente na idade de 19 a 23 anos. Sua vida estudantil em Atenas combinava trabalho sério com entretenimento agradável. Com Calvísio Tauro estudou Platão e Aristóteles; parece ter visto muito de Peregrino Proteu, do qual nos dá uma impressão muito diferente da transmitida por Luciano, e privou de familiaridade com o famoso retórico Tibério Cláudio Herodes Ático, que foi, mais tarde, em Roma, preceptor de Lúcio Vero e Marco Aurélio. Com seus colegas desfrutou da hospitalidade de Herodes em sua villa em Kefissiá ³ e em outros locais. Fez uma excursão à ilha de Égina com seus camaradas, e com Calvísio Tauro uma viagem a Delfos. Toda semana os jovens filósofos se encontravam para um jantar, onde se entregavam a várias diversões intelectuais. De volta a Roma, deu continuidade a seu interesse pela filosofia, instruindo-se mais ainda, quando se aproximou de um amigo do imperador Hadriano, Favorino, cuja "História Universal" pode ter sugerido a forma de "Noites Áticas", sendo possível que Gélio tenha se apropriado de algum material ali utilizado. Além de Favorino, fez amizade com os poetas Júlio Paulo e Aniano, bem como com outros intelectuais de sua época.  Logo também iniciou sua carreira jurídica, como juiz extra ordinem, provavelmente aos 25 anos de idade. Se levarmos em conta o que afirma Radulfus de Diceto (c. 1202?), Gélio morreu após 169 d.C. 
A obra "Noites Áticas" é uma coleção de interessantes apontamentos sobre gramática, antiguidades públicas e privadas, história e biografia, filosofia (inclusive filosofia natural), temas de direito, crítica a textos, história, crítica literária e vários outros assuntos. Oferece-nos informação valiosa em muitos campos do conhecimento e contém extratos de muitos escritores gregos e romanos, cujos trabalhos estão inteiramente ou em grande parte perdidos. Embora sua habilidade seja apenas moderada, Gélio é principalmente exato e consciencioso, embora às vezes dê a impressão de que tenha consultado outras autoridades (mas não alguém anterior a Marco Terêncio Varrão, que viveu de 116-28 a.C.) ou de que tenha usado material de terceiro.
O estilo de Gélio é às vezes obscuro e mostra uma tendência arcaizante (que é uma característica da época), adotando palavras em desuso, arcaísmos e expressões obsoletas. Frequentemente cita Cícero e Virgílio e sempre se refere a eles respeitosamente. Santo Agostinho o chama de "homem de discurso elegantíssimo e de ciência eloquente" .  Erasmo fala dos "comentários de Gélio, pelos quais nada pode ser feito mais claro nem mais erudito" .





II.  MINHA TRADUÇÃO DO CAPÍTULO II DO LIVRO IX DE "NOITES ÁTICAS", por Aulo Gélio




Em que termos Herodes Ático desmascarou um tal que pleiteava o título e o caráter de filósofo com uma falsa aparência e um manto.
I. Fomos testemunhas de como se aproximou de Herodes Ático, ex-cônsul, famoso pelo humor agradável e pela eloquência em língua grega, um tipo com um pálio  e com uma cabeleira longa e uma barba abaixo da cintura, pedindo que lhe fosse dado dinheiro para comprar pão. II. Herodes lhe perguntou quem ele era. III. E este, com semblante e tom de voz recriminatórios, respondeu-lhe ser filósofo, acrescentando também sua estranheza pela pergunta de Herodes sobre algo que saltava à vista. IV. “Estou vendo”, disse Herodes, “uma barba e um pálio, mas ainda não um filósofo. V. Peço-te que tenhas a bondade de dizer-me de que razões crês que possamos servir-nos para reconhecer que tu sejas um filósofo.” VI. Entrementes, alguns dos que estavam com Herodes acusaram o pretenso filósofo de vagabundo, um joão-ninguém frequentador de sórdidos botecos que costumava reagir com gritos injuriosos se não recebia o que pedia. Interveio então Herodes: “Seja qual for a condição dele, demos a ele algumas moedas, não por ele ser homem, senão porque o somos”, VII. e mandou dar-lhe o preço do pão de trinta dias. VIII. Então, voltando-se para nós que o acompanhávamos, disse: “Musônio  mandou fossem dados mil sestércios  a um mendigo deste tipo que posou como filósofo, e como muitos lhe dissessem que o fulano era um patife, cafajeste e um homem que não servia para nada, ele replicou com um sorriso, referindo-se a este: 'então ele merece o dinheiro'. IX. E Herodes acrescentou: “Mas, antes, é isso que me causa dor e aflição: ver seres sujos e maus deste tipo usurpar o mais santo nome, dizendo-se filósofos. X. Os Atenienses, meus ancestrais ¹⁰, proibiram por um decreto público aos escravos darem os nomes daqueles valorosíssimos jovens Harmódio e Aristogíton, que, para recuperarem a liberdade, tentaram assassinar o tirano Hípias ¹¹pois consideravam uma impiedade levarem ao contato da servidão nomes dedicados à liberdade da pátria. XI. Por que então nós suportamos o nome ilustríssimo da filosofia ser manchado nos piores homens? Ouço dizer que os antigos Romanos deram um exemplo semelhante, ainda que num gênero oposto, quando decretaram que os pré-nomes de certos patrícios, condenados por atentado contra a república, jamais seriam usados por algum membro da mesma família. Isso era para que seus próprios nomes passassem por infames e mortos, como aqueles.
Texto em Latim: http://www.thelatinlibrary.com/gellius/gellius9.shtml  


 


III.  NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹  Cit. in "Humanism and Scholasticism in Sixteenth-Century Academe. Five Student Orations from the University of Salamanca". Disponível in http://www.thefreelibrary.com/Humanism+and+Scholasticism+in+Sixteenth-+Century+Academe.+Five+...-a064057474 (Acesso em 16/07/2016) 
 
²   O que está descrito até o final desta seção foi adaptado da Introdução ao livro "Aulus Gellius, Attic Nights", por John C. Rolfe, Ed.  Cf. in http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0073%3Abook%3Dintro  
 
³   Na virada do milênio, tive a sorte de poder ir à Grécia, pela primeira vez, e frequentar, em janeiro de 2000, um centro para ensino de língua grega e manifestações culturais gregas, chamado "Greek House-Ellinikí Estía", que tinha sido fundado em setembro de 1999 e estava localizado na rua Georganta, nº 11, no bairro chique de Kifissiá, em Atenas. 
Flyer da Greek House
Através de atividades  cursos, seminários, palestras e, às vezes, exibições artísticas  oferecidas pelo Greek House, pude como estrangeiro ter um primeiro contato com a língua, história, cultura e moderno modo de viver na Grécia através de um corpo docente experiente e constituído de profissionais nativos, com formação especializada em Linguística e/ou Filologia, que realmente amavam seu trabalho e os estudantes. Esse primeiro contato foi determinante para a minha crescente admiração e amor pelo povo grego, sua história, cultura e tradições. Encontrei seu "home site" na Internet e reproduzo aqui para algum leitor que queira também recorrer a essa Instituição de ensino, quando eventualmente for à Grécia: https://www.greekhouse.gr/ Por fim, eis o certificado de minha participação naquele evento marcante para mim:
 
⁴ De Viris Illustr.: "Agellius scribit anno XCXIX." 

 De Civ. Dei, IX, 4: "vir elegantissimi eloquii et facundae scientiae".   

  Adagiorum Chilias L, cent. 4, prov. XXXVII: "Gellii comentariis, quibus nihil fieri potest neque tersius neque eruditius". 
   
  Pallium, nome dado pelos Romanos ao manto dos Gregos (τρίβων), simplesmente uma tira de tecido usada sobre os ombros. 
Mais tarde, o pálio também passou a ser usado sobre os ombros de autoridades eclesiásticas (papas, arcebispos e até bispos), representando um símbolo de poder e autoridade de um líder religioso do Catolicismo. Ainda no contexto da liturgia católica, um possível significado para o pálio é um dossel portátil, um tecido que é sustentado por quatro varas, usado em cortejos ou procissões para abrigar o sacerdote ou a hóstia consagrada que está sendo transportada. 
Em sentido figurado, pálio significa grandeza e ostentação, transmitindo a ideia de imponência. No Hino da República, a palavra "pálio" aparece logo no início, na frase "seja um pálio de luz desdobrado" do primeiro verso, indicando que o hino pretende ser um manto de luz que é estendido sob os céus, iluminando a todos.  

  Caio Musônio Rufo, filósofo estóico do primeiro século da era cristã e mestre de Epicteto, era etrusco. Musônio Rufo nada escreveu, mas dois de seus alunos incumbiram-se disso, deixando 21 diatribes e fragmentos do mestre. Grande parte do que nos chegou sobre o pensamento de Musônio foi preservada por Estobeu, eclesiástico do século V, mais exatamente, as 21 diatribes e 19 ditos, bem como por Aulo Gélio (4 ditos nas "Noites Áticas"). Esses trabalhos de Musônio Rufo são importantes porque escritos sob o prisma do estoicismo romano. Cf. maiores informações in http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/178/DIATRIBES%2012%20E%2013%20DE%20MUS%C3%94NIO%20RUFO%20SOBRE%20COISAS%20RELATIVAS%20A%20AFRODITE%20E%20CASAMENTO.pdf  

   Pequenas moedas de cobre. 

¹⁰  Ao considerar os Atenienses seus ancestrais, Herodes Ático revela-se um autêntico filélinas (φιλέλληνας), significando alguém que ama o povo grego.  

¹¹  Harmódio e Aristogíton, célebres tiranicidas, foram dois antigos atenienses que se tornaram heróis por terem tentado, em 514 a.C., assassinar os irmãos Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato (este, responsável pela introdução da tirania em Atenas).  Chegado o momento de executar o plano, agiram de forma precipitada, só conseguindo matar Hiparco. Após a morte do irmão, Hípias tomou medidas autoritárias, que geraram descontentamento entre a população. Em certa medida, o ato de Harmódio e Aristogíton levaria ao fim da tirania em Atenas, já que em 510 a.C. o rei espartano Cleómenes I invadiu Atenas, levando Hípias a fugir e refugiar-se junto ao rei persa Dario I. Esses fatos foram narrados pelo historiador Tucídides em sua obra História da Guerra do Peloponeso.