quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O PROÊMIO DA ODISSEIA


Por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO


Em visita a Atenas, é muito comum o turista encontrar um comércio ativo de "souvenirs" da Grécia que pode localizar em lojas de grifes famosas, como as do bairro Kolonáki, próximo à Praça da Constituição ou Syntagma (Πλατεία Συντάγματος), onde se encontra o Parlamento grego, ou na rua Ermou, que liga a Praça da Constituição a outra praça, denominada Monastiráki. Também, pode optar por adquirir tais "souvenirs"  em infindáveis lojinhas através de pequenas ruas tortuosas no bairro Pláka em direção à mesma Praça Monastiráki.

Na minha última ida a Atenas, encontrei uma camiseta  numa loja de lembranças, que comercializava artigos variados, desde roupas a objetos de cerâmica, dirigida por uma amiga carioca, Cleonice Ribeiro Gomes, que na ocasião já era cidadã grega há uns vinte anos. Essa loja ficava dentro do Novotel Athènes, que se localiza próximo à estação Larissa do metrô ateniense.

Adquiri tal camiseta porque trazia uma estampa curiosa, mostrada na seção seguinte, com os primeiros cinco versos da célebre Odisseia, constitutivos da primeira parte do seu famoso proêmio.


II.  TRADUÇÃO DO PROÊMIO DA ODISSEIA
 

Estampa de uma camiseta com os primeiros 5 versos do proêmio


Observa-se facilmente que se trata de um texto em grego antigo, escrito em letras maiúsculas, extraído do poema épico "Odisseia", de Homero, que se pode deduzir pelo título "De Homero Odisseia" (ΟΜΗΡΟΥ ΟΔΥΣΣΕΙΑ ou ῾Ομήρου Ὀδύσσεια). O poema relata o regresso de Odisseu (ou Ulisses, como era conhecido na mitologia romana), herói da Guerra de Tróia e protagonista que dá nome à obra. Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Tróia, que havia durado outros dez anos. 

A influência homérica é clara em obras como a Eneida, de Virgílio, Os Lusíadas de Camões, ou Ulysses, de James Joyce, mas não se limita aos clássicos. As aventuras de Odisseu, consubstanciadas na superação desesperada dos perigos e na vitória sobre as ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência, são a matriz de grande parte das narrativas modernas, desde a literatura ao cinema. Em português, bem como na maioria dos idiomas ocidentais, a palavra "odisseia" passou a referir-se a qualquer viagem longa, especialmente se apresentar características épicas.

A trama da narrativa, surpreendentemente moderna na sua não-linearidade, apresenta a originalidade de só conservar elementos concretos, diretos, que se encadeiam no poema, sem análises nem comentários. A análise psicológica, do mundo interior, não era ainda praticada. As personagens agem ou falam; ou então, falam e agem. E falam no discurso direto, diante de nós, para nós, preparando, de alguma forma, o teatro. Os eventos narrados dependem das escolhas feitas tanto por mulheres, criados e escravos, quanto por guerreiros.

Vê-se no centro da estampa a figura de um aedo, que era quem cantava os poemas homéricos, compostos em hexâmetros dactílicos, e se acompanhava ao som de uma cítara ou fórminx, como consta na própria Odisseia (Canto ou rapsódia VIII, vv. 43-92) e também na Ilíada (Canto ou rapsódia IX, vv. 187-190).
Uma fórminx

Pois bem. O texto da estampa da camiseta (5 versos) foi extraído do proêmio (10 versos), que consta do Canto ou rapsódia I da Odisseia, cujo texto é reproduzido abaixo em letras minúsculas principalmente:


Ἄνδρα μοι ἔννεπε, Μοῦσα, πολύτροπον, ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη, ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν:
πολλῶν δ’ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω,
πολλὰ δ’ ὅ γ’ ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν,
ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων.

O que foi transliterado foi exatamente a primeira metade do proêmio, ou seja, os primeiros cinco versos do Canto ou rapsódia I da Odisseia. Os outros cinco versos correspondem à outra metade do proêmio que, completo, possui 10 versos.

ἀλλ’ οὐδ’ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο, ἱέμενός περ:
αὐτῶν γὰρ σφετέρῃσιν ἀτασθαλίῃσιν ὄλοντο,
νήπιοι, οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
ἤσθιον: αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ.
τῶν ἁμόθεν γε, θεά, θύγατερ Διός, εἰπὲ καὶ ἡμῖν.

Eis, pois, a minha tradução para todo o proêmio: 

Canta-me, ó Musa, o varão astucioso ¹, que tanto vagou,
depois de devastar a cidadela sagrada de Tróia,
que de muitas pessoas viu cidades e conheceu seus costumes
e no mar sofreu muitos tormentos no seu coração,
quanto lutava pela sua vida e o retorno dos companheiros.
Mas nem assim salvou os seus, embora o desejasse:
pois se perderam por culpa da própria louca presunção
os imaturos, ao devorarem o gado (sagrado) do Sol Hipérion ²:
assim, negou-lhes o deus o doce dia do retorno.
Começando de algum ponto, ó deusa, filha de Zeus, fala-nos dessas coisas.


[VAN GRONINGEN, 1999, 109-115, apud FRADE, 2014, 111] compara os proêmios de poemas arcaicos de amplo acesso e identifica uma estrutura básica, composta por: 
1) uma invocação da(s) Musa(s) [considerada(s) pelos Gregos como patrona(s) da poesia]
2) indicação do assunto (o que garante a unidade narrativa e a coesão dentro da continuidade indefinida das histórias míticas, mas nunca corresponde a um sumário de todo o conteúdo narrativo dos poemas); e 
3) ponto de início. O pesquisador sugere que a referência à morte da tripulação no proêmio é resultado de um processo de livre associação de ideias, que parte da aventura geral de tentar salvar a si mesmo e os companheiros para um caso particular. O estabelecimento de um marco inicial, terceiro elemento da estrutura básica, se aproxima mais de uma explicação aceitável para essa menção da morte dos tripulantes logo no proêmio. Ele tem razão quando percebe que a primeira palavra de cada epopeia arcaica é o resumo mais conciso do poema: no caso da Odisseia, a primeira palavra utilizada por Homero é "homem", macho adulto, varão (ἀνήρ, genitivo ἀνδρός, utilizada no caso acusativo νδρα). ³


III. ESTUDO SOBRE A DEFINIÇÃO DO POEMA E DO HERÓI 
 

Observe que a Odisseia não menciona que o "varão" anunciado no primeiro verso é Odisseu. Segundo [FENIK, 1974, 20, apud FRADE, 2014, 112], esse padrão se repete como preparação para o atraso mais importante e elaborado: a revelação da identidade de Odisseu para Penélope. Ainda segundo [KAHANE, 1992, 117-119, apud FRADE, 2014, 112], a menção de νδρα em posição inicial de verso sugere "homem objeto deste canto", como modelo  de excelência nas funções de prestígio para um homem em sociedade (guerreiro, marido e astucioso articulador de ardis), logo depois identificável nas falas de Nestor, Telêmaco e Nausícaa. Finalmente, [MALTA, 2007, 65-66, apud FRADE, 2014, 112-113] desdobra os seguintes sentidos de νδρα: como substituto do nome se refere ao desaparecimento de Odisseu (e a seu posterior anonimato), ao homem adulto (modelo de seu papel social), à condição mortal e à condição humana geral. O proêmio classifica Odisseu como o tipo de herói da inteligência, em contraposição ao herói iliádico da força, embora o primeiro não deixe de ser também um guerreiro. [BASSETT, 1923, 65-66, apud FRADE, 2014, 111] viu no proêmio da Odisseia (e também no da Ilíada) a referência direta às vastas possibilidades do tema [nas palavras μάλα, πολλ (verso 1), πολλῶν (verso 3), πολλ (verso 4) com significado de "muito" ou "(de) muitos"] que caracteriza a épica.

Ainda sobre a definição de Odisseu e da Odisseia, [PUCCI, 1998, 11-29, apud FRADE, 2014, 113] refina a abordagem intertextual e identifica no proêmio uma espécie de poética implícita com a defesa da Odisseia e do tipo de herói que é Odisseu, diante de Aquiles e da Ilíada. O herói iliádico que causa a destruição de seu exército e opta pela morte é substituído pelo herói que tenta salvar seus companheiros e consegue preservar sua vida. [PERADOTTO, 1990, 94-119, apud FRADE, 2014, 114] lê πολύτροπον, que ocupa uma posição em que tradicionalmente se esperaria o nome do herói, como o contrário de um nome, uma palavra que, em vez de fixar um referente, indica a multiplicidade de sua forma, sua mutabilidade e capacidade de assumir papéis variados. Essa indefinição é, na verdade, parte da definição do herói ou mesmo a maneira mais adequada de defini-lo e corresponde a um modelo de excelência particular do poema (que será ampliado na sequência do proêmio e no primeiro discurso de Zeus): uma versatilidade que inclui inteligência, experiência e lábia para lidar com o que quer que apareça pela frente. É contra esse homem que se levantam dois grupos dos diversos adversários de Odisseu, também formados por homens, que, porém, nunca agem com a "multiversatilidade" do herói: a sua tripulação, com desavenças causadas por desconfianças, e os pretendentes à mão de Penélope, sediados na ilha de Ítaca. A menção aos tripulantes encerra a inicial caracterização de Odisseu com sua contraposição a todos os que fracassam por um ato insensato. O proêmio não se propõe a dar um resumo das viagens nem seleciona apenas uma aventura especialmente representativa do todo como exemplo. O caso da sobrevivência de Odisseu à morte da tripulação, que matou as vacas do Sol na ilha do deus e por essa impiedade foi castigada com a morte por Zeus, inaugura a fase da viagem sem companhia humana e explica e define sua situação inicial na narrativa, como único homem a chegar à ilha da ninfa Calipso. O proêmio menciona em primeira informação os tripulantes no verso 5, enquanto a Odisseia é apresentada como poema de νόστος, de retorno de guerreiros gregos após a Guerra de Tróia (versos 2 e 5), mostrando também Odisseu como o herói do sofrimento, para salvar sua própria vida e para garantir o retorno de seus companheiros (versos 2 e 4), e (o herói) da aventura (verso 3). A segunda informação é que a tentativa de salvar seus companheiros não deu certo (versos 5 e 6). Finalmente, o verso 7 dá a razão para o fracasso do retorno destes, fruto de sua insensatez. O verso 8 coloca os tripulantes como opostos de Odisseu: os primeiros são caracterizados como infantis (νήπιοι), enquanto que Odisseu é referido como ἄνδρα (homem maduro). No primeiro momento, os companheiros (ἑταῖροι ou ἕταροι desde o proêmio) aparecem como objeto da preocupação do herói; quando se tornam agentes, a sua ação é desastrosa. O erro humano cometido por eles foi chamado de ἀτασθαλίαι por Homero na Odisseia, "o erro que é fruto do mau julgamento de uma ação planejada e deliberada, quando o agente é avisado com antecedência sobre a possibilidade de desgraça em decorrência do que planeja fazer". No caso da impiedade cometida contra o deus Sol, apesar de ter havido advertências da parte do adivinho Tirésias e da maga Circe,  os tripulantes cometem a insensatez de matarem e comerem as vacas do Sol. [FRADE, 2014, 117] contou "nove vezes em que o vocábulo ἀτασθαλίαι aparece na Odisseia: cinco dizem respeito aos pretendentes (XXI, 146; XII, 317; XII, 416; XIII, 67 e XXIV, 458), duas à tripulação (I, 7 e XII, 300), uma a Egisto (I, 34, outro modelo negativo de comportamento, um paralelo para os pretendentes) e uma a Odisseu (X, 437)". O mesmo vocábulo, ἀτασθαλίαι, aproxima pretendentes e tripulantes no resultado final (catástrofe), embora não se deva ignorar as circunstâncias em que suas transgressões ocorrem: "os pretendentes, diante da situação atípica de um homem que nem retorna para casa, nem é confirmado como morto, criam para si mesmos o cenário o assédio a Penélope e à casa de Odisseu que os leva a atos de insensatez, enquanto os tripulantes respondem (de forma insensata) a uma situação de risco à qual foram levados por forças além de seu controle", isto é, a fome. Diferente de seus companheiros, que reduzem a questão a uma decisão entre a inanição ou o afogamento pela transgressão, a sobrevivência de Odisseu, a grande façanha de seu autocontrole, é a prova de que a questão real não era escolher o tipo de morte, mas como manter-se vivo

O sofrimento como integrante da caracterização essencial do personagem principal da narrativa (verso 4 do proêmio) faz parte aqui de uma visão sobre a existência mortal que se revela positiva, em que a ação apropriada permite a superação de ameaças à vida e ao retorno, ainda que não se passe incólume. Isso tudo é antecipado no próprio proêmio.  

No proêmio fica ainda explícita a relação entre deuses e homens em três momentos. No primeiro verso do poema, o narrador se coloca como dependente da Musa para desenvolver sua narrativa, que tem, aliás, o "homem" como objeto. Sua relação com a musa é estreita (μοι, "para mim"). Nos versos 8 e 9, a fúria do Sol revela que os homens estão submetidos ao temperamento de deuses pela violação de suas prerrogativas. Encerrando o proêmio, o verso 10 utiliza agora ἡμῖν, "para nós", significando que o narrador pode agora incluir sua audiência, os receptores da narrativa. Ele dirige-se à musa, filha de Zeus, pedindo-lhe que comece a narrativa a partir de algum ponto (ἁμόθεν). É a deixa para que a sua narrativa tenha início a partir do limites já propostos com o caso da morte dos tripulantes. O proêmio conclui-se com uma menção a Zeus, pai das musas, cujos desígnios definem o curso da narrativa.



IV.  NOTAS  EXPLICATIVAS




¹  Odisseu  é o herói da Odisseia. O nome "Odisseia" vem desse herói grego, Odisseu, rei de Ítaca, que os latinos chamaram de Ulisses. Por sua vez, a etimologia do nome grego Odisseu provém de δύσσομαι (irar-se, zangar-se, ficar irritado). O poema "Odisseia" é formado de 24 cantos ou rapsódias, que contam as aventuras de Ulisses, após a guerra de Tróia, tentando voltar para casa (Ítaca). Para bem caracterizar esse herói, Homero usou o vocábulo πολύτροπον, o qual traduzi por  "astucioso" [também usado por Manuel Odorico Mendes (1799-1864) e Carlos Alberto Nunes], significando que é esperto, que "muito se vira" conforme a circunstância. Alguns tradutores recomendam o termo "multiversátil" (Trajano Vieira) e "multifacetado" (Donaldo Schüler) ou "astuto" (Frederico Lourenço), até "o muitas-vias" (Christian Werner) e "o de mil estratagemas", mais comum na tradução fornecida pela Internet, cuja autoria não é identificada. Em italiano, o tradutor italiano optou por "multiforme" (Rosa Calzecchi Onesti) ou "di multiforme ingegno" (Ippolito Pindemonte) e ainda "dall'agile mente" (mais comum na Internet, embora não identificado).  

Nunca é demais enfatizar que o traço heróico de Ulisses está na sua esperteza (mêtis ou métis, μήτις em grego). Para [PUCCI, 1998, 11-29, apud FRADE, 2014, 113], essa multiplicidade e essa versatilidade de Odisseu se aplicam tanto à sua capacidade mental e sabedoria (afinal, é o herói da μήτις, "astúcia", e δόλος, "ardil"), quanto às suas muitas viagens ("que se voltou para muitas direções") e, por fim, à sua habilidade com a linguagem. Isso é ao mesmo tempo o resultado de seu retorno peculiar e o que faz dele o personagem apto a completá-lo com sucesso.

Segundo [JOURDAN, 2011, 29-33], Ulisses é o herói que usa a métis do navegador para executar um feito jamais realizado por um homem, ou seja, não ter sucumbido ao canto das Sereias (Canto XII vv. 37-56). No embate entre Odisseu e as Sereias, é que a métis é fundamental, "uma vez que essa noção se exerce nos cenários ambíguos, de instabilidade, de movimento, seja na relação do homem com o mar (Ulisses/navegação), do enfrentamento de um perigo (Ulisses/Sereias) ou da luta de duas forças antagônicas que aqui estão representadas pelo homem e natureza."

Citando Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, a autora analisa o termo métis, o qual "designa uma inteligência astuta, um ardil com certa previsão do futuro, uma sagacidade capciosa, uma prudência avisada. O seu campo de atuação é amplo e relevante para os sistemas de valores dos gregos, entretanto, mantém-se nas 'esquinas' dos acontecimentos, nas 'fendas' de atuações do cotidiano."

Mas, afinal, o que é métis?
Para a autora, "a noção métis é um jogo das práticas intelectuais e sociais que se apresentam no faro, na sagacidade, na vigilância constante, no desembaraço, na previsão, na sutileza de espírito. Os indivíduos que possuem a métis agem no 'tempo de um relâmpago', porém não é algo impensado, ao contrário, é um pensamento rápido e profundo, que prevê de antemão suas consequências e possibilidades."

A métis só se aplica a circunstâncias extremas?
"A métis se encontra intrinsecamente ligada à prática, sendo concebida, também, como improviso, artifício, astúcia, prudência. Esse tipo de inteligência se faz necessário justamente quando o uso de força física não pode ou não deve ser utilizada para a obtenção do sucesso em determinada atividade.

A métis é apanágio de algum deus?
"A métis está intrinsecamente ligada ao mito de Palas Atena, uma vez que esta é a detentora daquela. 
(...) em um primeiro momento seria curioso pensar em uma atuação de Atena no mar e na navegação. Esta se potencializa como αίθυια , atuando na orientação do navegante, seja como um animal que o orienta, como a gralha marinha, ou por intervenção direta, como ocorre na viagem de Telêmaco na Odisseia. Em ambos os casos, a métis do navegador se faz necessária para se aperceber das inúmeras situações que lhe são configuradas."

[JULLIEN, 1998, 19] menciona: "Ulisses, o engenhoso Ulisses, Ulisses dos mil rodeios, é o herói rico em metis polymetis." 
 
A argúcia do herói também se manifesta no uso de dissimulações, blefes, trapaças ou discursos enganosos. Os ardis de Ulisses vão desde os físicos (alterando sua aparência) até os verbais, como fez, por exemplo, ao contar ao cíclope Polifemo que se chamava "Ninguém", e fugir após cegá-lo; quando os outros cíclopes perguntaram a Polifemo o motivo de seus gritos, ele respondeu que "Ninguém" o lesionou. Então, os outros cíclopes disseram a Polifemo: "se sozinho você está, ninguém usa  de violência contra você. Ora, não há como escapar do mal enviado pelo grande Zeus. Então será melhor suplicar a seu pai, Poseidon." 

Por outro lado, a falha de caráter mais evidente em Ulisses é sua soberba, ou ὕβρις em grego. Originalmente significava "tudo que passa da medida", "descomedimento", podendo o significante ser estendido a outros significados, a saber, presunção ou insolência contra os deuses, que foi o que aconteceu com a tripulação de Odisseu ao devorar o rebanho sagrado do deus Sol. No proêmio, Homero usa outra palavra que tem o mesmo significado ou muito parecido, com a observação adicional de que aparece na Odisseia sempre no plural: ἀτασθαλίαι, no caso dat. plural épico jônico ἀτασθαλίῃσιν. Tal vocábulo que pode ser entendido como "pecado da presunção, atitude desafiadora, impiedade ou imprudência", que, in casu, a tripulação de Odisseu praticou contra o deus Sol, punida por conseguinte com o impedimento do seu retorno a Ítaca, ou seja, com morte por afogamento

Tomemos outro exemplo da própria Odisseia. À medida que navegava para longe da ilha dos cíclopes, Ulisses grita seu próprio nome, bravateando que ninguém pode derrotar o "Grande Ulisses". Os cíclopes então jogaram metade de uma montanha sobre seu barco, e suplicaram a seu pai, Poseidon, dizendo que um de seus filhos (Polifemo) foi cegado; irado, o deus dos mares impede Ulisses de voltar para casa por muitos anos.

²  Hipérion ou Hiperíon (como no grego antigo) ou Hiperiônio (Ὑπερίων é "o que contempla de cima"), na mitologia grega, é um dos titãs, filho de Urano e Gaia. Da sua união com sua irmã Teia, nasceram Eos (a Aurora), Hélio (o Sol) e Selene (a Lua). Não raro o nome Hipérion é atribuído ao próprio Sol (Hélio). Segundo Diodoro Sículo, Hipérion foi o primeiro a estudar o movimento do Sol, da Lua e das estrelas e, por isso, foi chamado de pai desses astros. Os Gregos o identificaram com o deus persa Mitra. Ovídio, em Fastos, livro I, v. 381-92, menciona que os Persas sacrificavam cavalos a Hipérion, porque nenhuma vítima lenta poderia ser ofertada em honra de um deus rápido.  

³  No caso da Ilíada, a primeira palavra  mencionada por Homero foi "cólera" (μῆνις, utilizada no caso acusativo μῆνιν).

  Ave marinha conhecida como zarro (pato selvagem migratório), epíteto da deusa Atena ("a que mergulha", expressão associada à sua função de instrutora nas artes da navegação e construção de navios).
 Aythya é um gênero de aves anseriformes, chamadas zarros, patos selvagens migratórios que habitam a Eurásia. Fonte: Wikipedia
Palas Atena foi a protetora de Odisseu em toda a longa e perigosa viagem de volta para casa (ilha de Ítaca). Também favoreceu Telêmaco, filho de Odisseu e Penélope, disfarçada como Mentor *, o tutor de Telêmaco, aconselhando-o a ir informar-se sobre o destino de seu pai, profetizando que Odisseu em breve estaria de volta e, mais tarde, instruindo Telêmaco como agir contra os pretendentes de sua mãe, Penélope.

* Obs. Mentor era um sábio e amigo fiel de Ulisses. Quando este partiu para a Guerra de Tróia, confiou a seu amigo Mentor seu filho Telêmaco e sua esposa Penélope. Mentor foi amplamente responsável pela educação da criança, formação de caráter, transmissão de valores e, mais importante, pela sabedoria de suas decisões. Sua presença era indispensável quando decisões práticas precisavam ser tomadas, ou quando escolhas críticas tinham de ser feitas. Nessas ocasiões, em que as decisões práticas precisavam ser tomadas de improviso, a métis do aprendiz devia ser acionada e cabia a seu tutor encaminhá-lo nesta direção. No final da jornada, Telêmaco já tinha amadurecido e, por conseguinte, tomava tais decisões com independência. 
Partindo dessa origem histórico-literária na Odisseia, o papel do mentor em educação tem adquirido importância crescente. No Brasil, a palavra "tutor", mais do que "mentor", tem sido utilizada para denominar esse papel educacional.
 




V.  BIBLIOGRAFIA 
 



BASSETT, S.E. The Proems of the "Iliad" and the "Odyssey". The American Jounal of Philology, Baltimore, vol. 44, nº 4, p. 339-348, 1923.

DETIENNE, Marcel & VERNANT, Jean-Pierre: Les Ruses de l'Intelligence - La mètis des Grecs, Paris: Flammarion, 1974, 317 p.

FENIK, B. Studies in the Odyssey: Hermes Einzelschriften 30. Wiesbaden: F. Steiner, 1974.

FRADE, Gustavo Henrique Montes: "A tripulação de Odisseu e o proêmio da Odisseia", revista Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: UFMG, vol. X, nº 2, jul-dez 2014, pp. 109-24
Fonte: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/nuntius_antiquus/article/viewFile/8267/7121   

JOURDAN, Camila Alves: "Os usos da métis: Odisseu (VIII a.C.) e a Batalha de Salamina (V a.C.)", Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 6, nº 2, dezembro de 2011, pp. 27-37.

JULLIEN, François: Tratado da Eficácia, São Paulo: Editora 34 Ltda., 1998, 236 pp.
Fonte: https://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&tbo=p&tbm=bks&q=isbn:8573261129
 
KAHANE, A. The first word of the "Odyssey". Transactions of the American Philological Association, Baltimore, vol. 122, p. 115-131, 1992.
 
MALTA, A. Polú pollá pollôn: multiplicidade no proêmio da "Odisseia". Synthesis, La Plata, vol. 14, p. 53-70, 2007.
 
PERADOTTO, J. Man in the middle voice: name and narration in the "Odyssey". Princeton: Princeton University Press, 1990.

PUCCI, P. The proem of the "Odyssey". The Song of the Sirens. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 1998, p. 11-29.

VAN GRONINGEN, B.A. The proems of the Iliad and the Odyssey. In: DE JONG, I.J.F. (org.). Homer: Critical Assessments, vol. 3: Literary Interpretation. London: Routledge, 1999, p. 109-118.

WIKIPEDIAverbete "Odisseia"
Fontehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Odisseia

15 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

A "Odisseia", cujo herói é rei de Ítaca, Odisseu ou Ulisses (na mitologia romana), é um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. É, em parte, uma sequência da "Ilíada", cujo herói é Aquiles, outra epopeia creditada ao mesmo autor. Ambos os poemas são fundamentais no cânone ocidental.

Na Odisseia o argumento é centrado em Ulisses e seus companheiros, no seu filho Telêmaco e na sua mulher (Penélope). Ulisses, rei de Ítaca, é esperado pela mulher e pelo filho durante anos, após o fim da Guerra de Tróia, da qual participou. Penélope, assediada por vários pretendentes, promete-lhes escolher marido quando acabar de tecer um tapete, que tece durante o dia e desfaz de noite. Telêmaco vivencia diversas aventuras à procura do pai. Ulisses vê dificultado o regresso a seu lar, na ilha de Ítaca, devido a diversos obstáculos: tempestades, cíclopes, sereias, etc.

A "Odisseia" é um conjunto de aventuras mais complexo que a "Ilíada". A astúcia de Ulisses, as aventuras do seu corajoso filho Telêmaco, a fidelidade de Penélope e outros aspectos desta epopeia fazem-na mais humana, comparado com o aspecto predominantemente heróico da "Ilíada".

A "Odisseia", assim como a "Ilíada", é um poema elaborado ao longo de séculos de tradição oral, tendo tido sua forma fixada por escrito provavelmente no fim do século VIII a.C.

Meu presente trabalho tem o objetivo de analisar os 10 primeiros versos do Canto I, considerados "proêmio" da Odisseia.

Paschoal Motta (autor de "Eu, Tiradentes") disse...

CARO BRAGA,

seus estudos são sempre interessantes e oportunos. Tenho lido, arquivado e repassado algumas deles a pessoas interessadas em Literatura no geral.

Meu abraço,

PASCHOAL MOTTA

Prof. Fernando Teixeira (professor universitário, escritor e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Secretário Geral) disse...

Sua atividade intelectual merece encômios, prezado confrade. Cumprimento-o, por isto. Abraço amigo e transmita minha homenagem a Rute.
Fernando Teixeira

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (desembargador, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito bom!

José Antônio de Ávila Sacramento disse...

Prezado Braga, meus parabéns. O texto que você publicou me foi muito bem-vindo: ele vai me auxiliando a desvendar o (real) significado dos mitos homéricos da Odisseia!

Dr. Alaor Barbosa (escritor, cronista, jornalista, membro do IHG do DF e da Academia Goiana de Letras) disse...

Nos dez anos da viagem de regresso estão computados os anos passados na ilha daquela mulher muito bonita, não sei se ninfa, que o reteve, apaixonada por ele?

Marlene Santos disse...

Caro Braga, muito obrigada pela aula sobre o mundo mágico da mitologia grega.
Um abraço cordial
Marlene

Maria de Lourdes Dias (autora do site Vírus da Arte & Cia.) disse...

Braga

Acabo de ler o seu artigo. Excelente! Imperdível!

Gente como você faz toda a diferença no mundo virtual.

Abraços,

LuDiasBH

Prof. Mário Celso Rios (professor, escritor, conferencista e presidente da Academia Barbacenense de Letras) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Ozório Couto (jornalista, editor da revista Leitura, publicação da Associação dos Lojistas de BH, escritor e membro do IHGMG) disse...

Conheci Atenas. Andei para tudo quanto foi lado. Amei o bairro Plaka. E tive a honra de ficar sozinho por muito tempo na Acrópole. Quando lá cheguei, garoando, um grupo de argentinos permaneceu por dez minutos e foi embora. Por sorte, ninguém mais apareceu. Explorei o máximo o local. E li a Odisseia, um livro que valeu a pena de ter lido.

Parabéns, Braga, você faz um trabalho muito bom, ou melhor, mais do que bom. Isso é confortante. E seu interesse é salutar para todos nós, principalmente para a intelectualidade pensante de São João.
Um abraço com os votos de que você tenha sempre o sucesso merecido.
Ozório Couto

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Só agora está sendo possível abrir o site de “O PROÊMIO DA ODISSEIA”. Compulsei rapidamente o seu texto, lendo aqui e ali alguns trechos e, com mais vagar terei oportunidade de saborear essa história fantástica, pelo que agradeço a gentileza de me haver enviado.

Desde já lhe felicito pelo importante trabalho de pesquisa.

Eu e Beth estivemos em Atenas no ano 2000 e ficamos encantados com a cidade. Visitamos, entre outros importantes sítios históricos, a Acrópole e Partenon. Da Igreja de São Jorge, no alto de um morro, vimos uma bela panorâmica da Acrópole.

Com um abraço fraterno,

O amigo Mario.

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor da EAESP-FGV e tradutor) disse...

Olá Prezado:
Ainda não li seu trabalho sobre a Odisséia, um dos livros chave de minha formação. Dizem que é livro chave da literatura Ocidental, que delineia a estrutura do romance. Todos os romances ocidentais se baseiam na Odisséia. Infelizmente não tenho a versão que li. Era uma tradução em prosa, publicada em Portugal, mas não lembro o tradutor nem a editora. Só lembro que a capa era brochura e que talvez seja da "Livraria Sá da Costa Editora Lisboa", da qual tenho as Obras Escolhidas do Pe. Vieira.
Não só por isso, mas por ter-me envolvido na arquitetura dos sonhos despertos da juventude e pela vida afora. Lamento, pois não pude recomendar a meus filhos a leitura das traduções que tenho, p. ex. Carlos Alberto Nunes, em versos brancos, de difícil acompanhamento. Tenho vários resumos como os da Ediouro, e outro, muito bem escrito e ilustrado, para uso de estudantes secundários. Nem esse eles leram.
Pergunto ... Não há em Portugal uma livraria que venda pela Internet ou algo semelhante à Estante Virtual? Ouvi dizer que sim. Talvez lá se consiga.

Benjamin Batista (presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Seu presente trabalho é um presente para todos nós. Parabéns, confrade.

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor da EAESP-FGV e tradutor) disse...

Obrigado por ter postado meus comentários sobre a Odisséia, em seu blog. Não o supunha, pois escrevi despretensioso. Sabe que esses primeiros versos da Odisséia, dizia-os de cor, em grego, um amigo meu, Emilio Spedicatto, da Universidade de Bologna. Uma vez, ao visitá-lo em seu “studium” em Stanford University (1974/76), pois era um “scholar” (i.e. um pesquisador contratado) naquela Universidade, escrevi, em grego, na lousa dele o início de uma fábula de Esopo (acho que já contei isso), que você deve conhecer: LÉON, ACOUSSAS POTÉ BATRACHOU MÉGA BOONTOS, EPESTRAFE PRÓS TÉ FONÉ...(Um leão, tendo ouvido certa vez um sapo gritando fortemente, seguiu na direção do som...) e por aí parei. Aí ele olhou, estava sentado de costas, levantou-se e escreveu em grego o resto da fábula, que eu esquecera. Você pode imaginar minha surpresa? Surpresa porque o Emilio era pesquisador no Instituto de Matemática Aplicada, e eu, mestrando no Departamento de Pesquisa Operacional, da Escola de Engenharia ambos de Stanford.

Isso apenas corroborou nossa amizade que dura até hoje, “hopefully”. Assim o digo, pois muita água rolou desde então, e não me correspondo com ele, faz já muito tempo.

Essa parte da língua e literatura grega, não estudei. Era reservada para o “Juniorado”. Esclareço: o Juniorado era um ano dedicado unicamente ao estudo de letras clássicas, o qual se seguia ao Noviciado, na Companhia de Jesus, SJ. A finalidade era preparar os noviços para a Faculdade de Filosofia, toda ela em latim. As aulas eram dadas em Latim, os textos, todos em latim, os debates, em latim, as perguntas, em latim, enfim a língua usada era o latim. Como na Idade Média até os primórdios da Moderna. Newton, lembremo-nos, escreveu em latim, no século XVIII. Eu vi na biblioteca de Stanford grossos volumes de 500 páginas que reuniam a correspondência de Newton. Enchiam muitas prateleiras. Tudo escrito em latim. É incrível quantas cartas esse homem escreveu! Era a língua da Ciência, que permitia a comunicação entre estudiosos de diversos países, como o é hoje, o Inglês. Isso infelizmente para nós, latinos, que teríamos larga vantagem na aprendizagem do latim frente aos anglo-saxões, eslavos, nórdicos etc. Para eles é muito mais difícil.

Como dizia, não estudei essa parte da literatura grega. O grego da Odisseia e da Ilíada é o chamado dialeto jônico. Daí que ficava para um segundo tempo, depois do Noviciado. E eu desisti da vida eclesiástica.

Resta dizer que tudo isso se perdeu, ao se abandonar o latim. Não a Filosofia, por certo, mas aquela atmosfera, aquele mundo nosso, cristão e católico, coração e pele. Aquilo tudo era muito grande, uma nação, aquele “locus” de onde sentimos a origem comum. Perdeu-se a língua, perdeu-se a nação. Minha língua, minha pátria, não é o que se diz?

Ulisses Passarelli disse...

Como não poderia deixar de ser, ULISSES é meu herói predileto, ídolo, referência e fonte de inspiração. Ótimo texto! Parabéns, prezado Braga.
Abç.cordial,
Ulisses Passarelli